Notas de leitura – No seio desse amargo mar, de Onésimo T. Almeida
Olegário Paz
Verão. Praia. Sabe bem o mergulho.
São cento e sessenta e nove páginas de formato 21×14, aproximadamente, mas não se intimide pois vai encontrar poucas de mais ou menos de trinta linhas – umas dez se tanto – e as restantes a média de quinze na mancha gráfica típica de texto teatral em que os nomes das personagens se destacam a dois intervalos. Se só sabe nadar ‘assim e assim’ no seio da açorianidade, não se preocupe, pois tem disponíveis algumas boias de salvação nas “Notas biográficas” finais. Três atos, o primeiro com sete cenas, o segundo “cena única” e o terceiro com oito, resumem a estrutura da peça.
A ação, intemporal, situa-nos num certo espaço mítico, “Casa dos Açores da Atlântida”, o assunto é a cultura açoriana, predominantemente literária, e tem como personagens os seus cultores de maior relevo que hão de, nas réplicas, evidenciar os respetivos traços particulares mais conhecidos (confirme-se na síntese que ocupa a contracapa do livro): Antero de Quental, o poeta filósofo atento à decadência de Portugal; Vitorino Nemésio, escritor mestre da açorianidade; Roberto de Mesquita, expoente do simbolismo nacional; Armando Côrtes-Rodrigues, o franciscano que tinha praticado a poesia modernista. E também: Domingos Rebelo, o pintor; Francisco de Lacerda, o músico; Teófilo Braga, o escritor prolífico; Alice Moderno, a mulher destemida e irreverente; Santos Barros, o malogrado poeta anti-independência. E muitos outros, com relevo para um jovem de 20 anos, obcecado com os “pais da açorianidade”, ansioso do regresso do poeta-filósofo. É com esta personagem que sobe o pano
Cena 1
(Jovem)
(Jovem, 20 anos, sentado numa poltrona, num dos lados do palco. Apenas uma luz sobre ele.)
Ah! Se Antero voltasse!… Mas onde estará ele?…
e termina o espetáculo
Cena 8
(Jovem)
(Apaga-se a luz e acende-se o foco sobre o jovem, que se levanta da poltrona em sobressalto. Ainda junto ao sofá, voltando para o centro do palco:)
Louco? Loucos são vocês!…
(Corre do palco para a plateia e atravessa-a gritando:)
Antero voltou!… Antero voltou!… Onde estará ele?… Onde estará? (Correndo, em direcção à porta de fundo da plateia, tropeça e cai.)
A cena única, que ocupa todo o segundo ato, representa “um debate sobre a identidade nacional” com seis personagens tipo, novas na peça, arremedo evidente da superficialidade com que muitas vezes estas questões eram tratadas entre nós
([…]. No palco, uma mesa com seis cadeiras. Sentadas estão seis pessoas – cinco oradores e um moderador. Dois deles cochicham constantemente entre si. Fernanda Vieira dormita a maior parte do tempo. De pé, junto a uma estante, está o Professor João Sardinha, com um ponteiro na mão, a comentar os diapositivos que, entretanto, vão sendo projectados num ecrã.
Trata-se dos retratos de Antero ou de fotografias em que aparece. Destaca-se, desde logo, a carga irónica posta nas falas do Moderador
Portanto, obrigado ao senhor Professor Doutor João Sardinha, catedrático de Filosofia e Espiritualidade Portuguesa na Universidade do Seixal…
ou nas do Primeiro Participante
[…] nós somos tão bons como os melhores da Europa. E, dizendo da Europa, dizemos do mundo, já que é neste velho continente que continuam a estar os intelectuais de maior craveira em qualquer parte. Eu prezo-me de ser também um intelectual. […] estou a escrever um livro, de que estou já tentando obter a tradução para todas as línguas da CEE, e que demostrará que o português poderá desempenhar, nos Estados Unidos da Europa, o papel sonhado para o esperanto na comunidade mundial.[…] Com os lucros das edições do meu livro no estrangeiro não vou perder mais tempo com este país. Irei para a Europa participar em congressos com gente de espírito largo.
Ou nos trocadilhos
Segundo participante
Gostaria então de dirigir-me ao escritor Raposo Falla… Falla, não é?
Raposo Falla
(Sorrindo) Falo, sim.
A Voz, qual ‘coro’ da tragédia, vai pondo em evidência os deslizes do debate. Um exemplo
Raposo Falla
[…] quando falei do barroco português, fiz referências ao barroco da Ribeira Grande, na Terceira. Nunca estive lá mas fiquei impressionado com uma reportagem que li num semanário.
Voz
A Ribeira Grande fica em S. Miguel. (Ouvem-se risos)
Raposo Falla
Perdão. É que eu confundo. Na Terceira fica é a Horta. (Mais risos)
Voz
Carregue-lhe! Carregue-lhe!… A Terceira fica é em Cabo Verde!
(Ouvem-se risos)
Raposo Falla
Não me levem a mal. Durante os anos da minha adolescência até pensava que o Vitorino Nemésio era açoriano e que Baltasar Lopes é que era caboverdiano!
Um interessante jogo de intertextos aflora diversas vezes nas falas, especialmente de Antero e Nemésio:
Antero
Devo ter fugido inconscientemente quando o Côrtes-Rodrigues galgou a terra.
Ressonância da peça de teatro que serviu de base ao conhecido filme de Henrique Campos Quando o Mar Galgou a Terra.
Nesta outra réplica
(Dando uma leve cotovelada em Côrtes-Rodrigues) Vem agressivo, o rabo-torto. Teve algum pesadelo com uma das Margaridas…
Referência à heroína de Mau tempo no canal, de Vitorino Nemésio.
Mas há muitas mais. Por exemplo, estas
Nemésio
É. Leu muitos livros continentais na infância.
Tesouro Poético da Infância, Organização e nota prévia de Antero de Quental.
R. de Mesquita
Se a tua pátria fosse a língua micaelense não terias fundado a Sociedade do Raio, mas sim a Sociedade do Corisco!
O Pessoa do semi-heterónimo Bernardo Soares: “A minha pátria é a língua portuguesa”.
Nemésio
Mas é bom rapaz. Bom lavrador de ilhas e de palavras.
O malogrado poeta José Henrique Santos Barros autor de O Lavrador de ilhas – I, (1977-1980).
A remissão para um dos mais conhecidos sonetos de Antero encerra a cena 7 do Ato III.
Nemésio
Coração liberto, porque não dormes connosco o teu sono eternamente?
Côrtes-Rodrigues
Não te bastou sonhar a vida inteira?… Louco!
Sonho que sou um cavaleiro andante. / Por desertos, por sóis, por noite escura, / Paladino do amor, busca anelante / O palácio encantado da Ventura! // Mas já desmaio, exausto e vacilante, / Quebrada a espada já, rota a armadura… / E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura! // Com grandes golpes bato à porta e brado: / Eu sou o Vagabundo, o Deserdado… / Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais! / / Abrem-se as portas de ouro, com fragor… / Mas dentro encontro só, cheio de dor, / Silêncio e escuridão – E nada mais!
Verão. Praia. Sabe bem o mergulho [n]o seio desse amargo mar.