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IV. Acordo Ortográfico: proposta alternativa
Na nossa opinião, e para todos os efeitos, uma eventual reforma linguística desta envergadura não deveria assumir os seus actuais contornos. Como princípio basilar, julgamos ser necessário aceitar a diversidade da língua portuguesa e das suas inúmeras variantes.
O Português Europeu e o Português do Brasil (tal como mais tarde também acontecerá com o Português falado em África ou na Ásia) encontram-se num processo de divergência linguística real, efectivo e multi-secular. Se são aceites as diferentes discrepâncias existentes a nível fonético, sintáctico e lexical, por que razão não aceitar aquela que diz respeito à ortografia. O argumento da unificação e da uniformização da ortografia de todos os textos escritos em Português não colhe, já que, independentemente da grafia convencionada e adoptada, subsistirão sempre outros elementos perturbadores desta utópica harmonia. Mesmo sob os desígnios deste Acordo Ortográfico, haverá sempre duas ou mais versões de um mesmo texto, pois estamos convencidos, por exemplo, que nenhum falante de Português Europeu admitirá como gramaticalmente correcto, ou até mesmo aceitável, a tendencial colocação proclítica dos pronomes pessoais reflexivos, tal como acontece no Brasil (Eu me chamo em vez de Eu chamo-me) ou o uso de vocabulário específico (Vamos beber um? em vez de Vamos beber uma cerveja?). chope
A relutância que um falante de Português terá em aceitar um texto que, não obstante uma ortografia comum a todo o espaço lusófono, contenha características gramaticais, lexicais ou outras que não as da sua variante, não só é normal como também legítima, o que, de certeza, repetimos, obrigará à manutenção de diferentes versões escritas de um mesmo enunciado. Por outras palavras, um dos principais cavalos de batalha do Acordo Ortográfico não terá qualquer resultado prático.
Gostaríamos, porém, de precisar que somos contra este Acordo, mas não contra toda e qualquer reforma linguística.
Admitiríamos, portanto, uma actualização da ortografia do Português, eventualmente partilhada em alguns dos seus aspectos por todos os países de língua oficial portuguesa, mas só se baseada em moldes muito específicos.
Desde logo, o processo deveria começar de baixo para cima ou, se preferirmos, do particular para o geral, isto é, cada Estado, se assim o entendesse e de acordo com as suas necessidades, levaria a cabo a sua própria reforma linguística e, só depois dessa, se reuniria com os restantes países lusófonos. Nesse encontro, para além de conhecidas e reconhecidas as diferentes variantes do Português, seriam discutidas as possíveis políticas linguísticas de comunhão, promoção e internacionalização da língua como um todo. Ultrapassada esta fase, elaborar-se-iam então materiais didácticos (dicionários, gramáticas, prontuários, manuais de estudo, etc.) que não só apresentariam as especificidades de cada variante, mas também indicariam quais as normas gramaticais, ortográficas, fonéticas e lexicais vigentes em cada território.
A nível internacional, e no âmbito de cada entidade, estabelecer-se-iam critérios lógicos e coerentes (antiguidade, peso demográfico, rotatividade, propriedade, entre outros) que permitissem e/ou justificassem o uso de uma ou de outra variante. Na União Europeia, por exemplo, seria utilizado o Português Europeu, nas reuniões da Mercosul o Português do Brasil, na CPLP a variante do país que a presidisse, e por aí adiante. Reparemos, contudo, que a comunicação em Português e/ou entre falantes de Português estaria, tal como até agora, sempre assegurada.
Temos obviamente a noção de que a nossa proposta não é particularmente unificadora, mas, pelo menos, parece-nos ser a única que, primeiro, respeita a evolução histórica da língua nos diferentes países, segundo, assegura a estabilidade e segurança linguística em todos os territórios, terceiro, amplia o conhecimento mútuo entre os países lusófonos, quarto, permite o estudo e o enriquecimento linguístico de todas as suas versões e, quinto, concede a cada um dos falantes de Português a liberdade e o direito de comunicar na sua própria variante.
A reforma linguística agora em curso é, portanto, e também na nossa opinião, artificial, incongruente e nociva, não só para a própria língua, mas também para os seus locutores. Em jeito de conclusão, desejaríamos por isso, e apesar do aparentemente louvável desígnio responsável pela actual iniciativa, que todo o processo não se transformasse, tal como já relembrado por Vasco Graça Moura, numa verdadeira vitória de Pirro.
Bibliografia
Legislação consultada em Fevereiro de 2009:
. Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
http://www.cplp.org/Acordo_Ortogr%C3%A1fico.aspx?ID=176
. Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico (I Protocolo Modificativo)http://www.cplp.org/Acordo_Ortogr%C3%A1fico.aspx?ID=176
. Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico (II Protocolo Modificativo)http://www.cplp.org/Acordo_Ortogr%C3%A1fico.aspx?ID=176
AAVV. www.ciberduvidas.com, consultado em Fevereiro de 2009.
AAVV. Acordo Ortográfico: guia prático. Porto Editora, Porto, 2008.
ALVES, Manuel dos Santos. O Novo Acordo Ortográfico. Universitária Editores, Lisboa, 1993.
CASTELEIRO, João Malaca, CORREIA, Pedro Dinis. atual: o novo acordo ortográfico. TextoEditores, Lisboa, 2007.
EMILIANO, António. Foi você que pediu um Acordo Ortográfico? Guimarães Editores, Lisboa,2008.
MOURA, Vasco Graça. Acordo Ortográfico: a perspectiva do desastre. Aletheia Editores, Lisboa, 2008.
Pedro Martins, Licenciatura em Direito (Universidade de Lisboa), Licenciatura em Línguas e Culturas do Mundo Moderno (Universidade de Roma “La Sapienza”), Estudos Pós-graduados em Língua e Cultura Portuguesa (Universidade de Lisboa). Docente universitário, investigador, consultor, tradutor, conferencista. Áreas de actividade: Estudos Portugueses e Lusófonos, Estudos (Inter)culturais, Estudos de Tradução, Políticas Linguísticas.