O ACORDO ORTOGRÁFICO ( I )
CARLOS ENES
O Acordo Ortográfico aprovado em 1990 (AO90), com posteriores protocolos modificativos, teve recentemente direito às primeiras páginas de jornais, na sequência de um Projeto de Resolução apresentado na Assembleia da República por dois deputados do CDS/PP. Pretendem os seus autores a criação de um Grupo de Trabalho para fazer o ponto da situação e na sequência propor a revogação, a suspensão ou a revisão do mesmo. Estava também agendada para discussão na Assembleia, no dia 20 de Dezembro, uma petição que pedia a desvinculação de Portugal do referido Acordo, o que deu ainda mais visibilidade ao facto.
Esta é uma matéria que tem dividido a sociedade portuguesa, com posições abertamente contrárias a qualquer alteração da ortografia, outras incondicionalmente favoráveis e, ainda, uma terceira via que aceita o Acordo, mas revendo alguns critérios que foram seguidos.
Num conjunto de artigos a publicar nas próximas semanas, procurarei sintetizar o processo que conduziu a este Acordo, fazendo também o ponto da situação dos argumentos dos que se manifestam a favor e dos que se opõem.
Confesso que não me foi fácil aceitar esta nova ortografia. A memória visual passou por muitos sobressaltos quando se confrontava com palavras decepadas, que o conversor LINCE averbava no ecrã do computador. Aos poucos fui-me habituando, mas não garanto que escreva sem erros. Esta também é matéria que não me traumatiza. Considero que este é um processo gradual de aprendizagem pelo qual já passaram algumas gerações e que aos poucos irei absorvendo as novas regras. Quem lê autores mais antigos, constata facilmente que os próprios foram alterando a sua ortografia ao longo da vida. Basta ver os textos de Vitorino Nemésio ou de Aquilino Ribeiro. A consulta aleatória de alguns livros da estante, publicados a partir dos finais do século XIX, ilustra bem as metamorfoses a que esteve sujeita a ortografia da língua aportuguesa.
Assim, ao percorrê-las tôdas fiquei surprehendido com similhante phenomeno: jámais imaginei tamanha diversidade de escrita na nossa língua secular. Escriptores de nome, homens de sciência, typos que passaram quase anónimos pela história, escreveram fôlhas e fôlhas, com ou sem êrros, mas não deixaram de escrever.
Fiquei a saber que a mãi da Judith ao não attender as supplicas da creança lhe provocou uma crise de hysterismo; que ella foi á pharmacia comprar um thermometro, porque a febre era insupportavel e lhe alterava o rhytmo cardíaco. Os labios inchados, a bôca secca, davam um ar de phantasma á menina. Como não quero vêl-a nem ouvil-a, sáio porta fóra e deixo esta desgraça atraz.
Depois de folhear os livros, que me serviram para rabiscar este desatinado texto, verificamos facilmente que a nossa escrita foi sofrendo profundas alterações até atingir o registo conhecido no final do século XX.
Entretanto passámos por reformas em 1911, 1945 e 1973 que modificaram substancialmente o modo como se escrevia. Todas as gerações que passaram por este processo tiveram, logicamente, a mesma reação de incómodo que eu tive perante a mudança. Tal como no presente, houve quem contestasse as reformas, mas elas fizeram-se sem traumas e com benefícios que hoje ninguém contesta. Para quem começa a sua aprendizagem de acordo com as regras da nova ortografia, as vantagens da simplificação introduzida são notórias.
A reforma agora operada não estará isenta de inconsistências e contradições que merecem reflexão por parte dos especialistas. O que me parece é que a resistência à mudança é uma característica muito portuguesa e se estão a empolar casos muito específicos para justificar uma oposição global.
Como iremos constatar nos próximos artigos, a tendência tem sido para a simplificação da ortografia ao longo dos tempos. E esta tendência acompanhou a vontade de democratização do ensino, procurando alfabetizar camadas mais amplas da população, com processos mais simplificados e acessíveis. Estou convencido que o grande Camões, que achava ser todo o mundo composto de mudança, por certo não deixaria de ver com bons olhos (ou infelizmente só com um) esta alteração.
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Comunidades
28 jan, 2014, 02:36
O ACORDO ORTOGRÁFICO ( I ) CARLOS ENES
Apresentamos um conjunto de cinco artigos sobre o Acordo Ortográfico de autoria do Professor, o historiador Carlos Enes, Deputado da Assembléia da República.