O meu primeiro contato com a Literatura Açoriana não foi numa Livraria. Foi num balcão de manjares típicos,tendinha de comidas açorianas armada na Expo-98.
Tudo começou na véspera pecaminosa,no restaurante Cozinha Velha,defronte ao Palácio de Queluz.Em cuja mesa regalei-me num magnífico bacalhau,regado a um vinho inesquecível. Um tinto chamado “Paço do Cardido.” A verdade é que abusei do vinho e no dia seguinte minhas olheiras denunciavam a farra alcoólica.
Bolsas sob os olhos,tão pronunciadas,que apareceram na ementa da tendinha açoriana da Expo 98. No cardápio, afixado no alto da parede, imaginei ter lido “olheiras”… Logo levei a mão ao rosto e perguntei: “será delírio ou as minhas olheiras já estão sendo servidas ao molho pardo?”
Claro que não lera “olheiras.” Mas “alheiras.” Fui saber o que era. E era embutido,um fiambre,uma espécie de lingüiça feita de pedaços de porco,galinha e coelho,tudo misturado a uma massa de pão,temperada ao alho. “Alheira” é essa deliciosa maçaroca,servida frita e bem guarnecida de batatas. Não sei se cometerei uma heresia ao pressupor este quitute como um prato nacional de Portugal e dos Açores. Mas gostei muito do “repasto.”E depois fui procurar livros de autores açorianos, cujos personagens comessem “alheiras” aos montes.
Percorri a Bertrand do Chiado e perguntei por jovens autores açorianos. Foi difícil encontrar, e assim mesmo, os nem tão jovens. Logo fui apresentado ao velho ícone Vitorino Nemésio. E a mais um livro de crônicas,acho que de Onésimo Teotónio Almeida.
Li Nemésio, “Mau tempo no Canal”e um livro de crônicas,inclusive as que escreveu no Brasil. E me surpreendi, em certos trechos, lendo-o como se estivesse lendo o nosso contista Othon Gama D`Eça.
Vitorino Nemésio e Othon D`Eça.`
Tanto dizem que Brasil e Portugal são países separados pela mesma língua que parecerá altamente improvável encontrar na prosa de seus escritores identidades formais e estilísticas. Mas elas existem. Separados pelo Atlântico,contemporâneos sem que se tivessem conhecido suas respectivas obras,Vitorino Nemésio e Othon Gama D`Eça construíram prosas cujas tangências formais ou estilísticas podem nos levar ao pasmo mais superlativo e à admiração mais veemente.
O mesmo mar lambeu-lhes os pés descalços, aqui na Praia do Bom Abrigo, ou lá, na “ Pátria Terceira”,Praia da Vitória. Na margem de lá,na paisagem insular de lavas e campos verdes, está o múltiplo Vitorino Nemésio, poeta, crítico, biógrafo historiador, mas, sobretudo, o extraordinário ficcionista e cronista.
Na margem de cá, nestas Ilhas verdes exuberantes e plástica tropical, pulsava também uma “açorianidade”: a prosa rica e extraordinariamente simples de Othon D`Eça. Sabe-se que aí é que reside o “segredo” – o simples ser belo e não apenas corriqueiro.
A semelhança das temáticas,debruçadas sobre o mar e seus povos, a estrutura social fortemente centrada no patriarcalismo e nos seus códigos de honra, o que aparece tanto na saga baleeira dos Açores e de certa sociedade rica e decadente em “Mau Tempo no Canal”, de Nemésio, como aparece na novela de Othon “Vindita Braba” ou nos contos/crônicas de “ Homens Algas”.
É notável a utilização, pelos dois autores, da carpintaria lingüística açoriana, em que se sucedem as elipses silábicas, as contrações de vogais, os metaplasmos de supressão e uma dança sintática que forjaria uma espécie de “açorianês”,derramado como lava na conversação dos nativos do arquipélago, e, na margem de cá, tagarelado pelos nossos Manezinhos do Ribeirão da Ilha, de Santo Antônio de Lisboa, ou do Canto da Lagoa da Conceição