A costura demográfica esticava nas ilhas açorianas. Não era de ombros a roçarem-se na rua ou nas igrejas sob a luz cândida das velas que os açorianos se inquietavam, ou ainda das pequenas casas de comércio onde as vozes se encontravam, sobretudo o branco olhar das mulheres. Era aquela corrente escura, íntima, pela qual transitavam os pensamentos, as perspectivas. As ilhas, porém, eram mais do que a sua terra: constituíam uma sensibilidade, um modo de estar.
Alguns, os mais aventureiros, sentiam-nas porém como barcos ancorados num oceano sem fim. Olhavam os filhos e questionavam o amanhã. No entanto estava ali toda a história das suas vidas. Uma angústia sem limites pesava-lhes no coração perante a hipótese de saírem dali. Acordar todos os dias com o mar rente aos pés e o vento nas mãos deixa na pessoa outro estuário de percepções. E eles sabiam-no.
Os muros das suas casas eram as fronteiras de um mundo conhecido, seguro e previsível. Das janelas observavam o crescer das estações e os pequenos rituais dos seus quotidianos. Nas ruas, estreitas e empedradas, a humidade luzindo na sua polidez de passos e Tempo percorrido, adivinhavam quem passava. Os nomes eram como tochas ardentes no espírito, fotografias emocionais de vizinhos e familiares guardadas na memória, geração atrás de geração. Como fechar de súbito as malas e enterrar, como páginas mortas de um romance nunca lido, tudo aquilo?
Mas foram.
Primeiro notaram o cheiro da terra. Depois a cor, um tom de sangue fértil que corria dos seus pés até ao horizonte.
Um disse, abraçando a mulher e os filhos:
— O mar dos Açores chega até aqui! Estamos em casa.
Então, sobretudo os que ficaram na Ilha de Santa Catarina nesse longínquo Janeiro de 1748 começaram a edificar as suas novas vidas segundo o padrão ilhéu: mantendo os rituais da sua religião, aquele profundo sentido de grupo que trouxeram das suas freguesias, e as palavras do passado cujo sentido não se perdeu na fogueira de um novo léxico.
Hoje, séculos depois, amando com paixão o Brasil, os descendentes desses pioneiros açorianos regressam à memória dos Açores.
Trazem consigo as suas guitarras, a sua música e poesia. O seu modo de ser tropical. Nas procissões, cálidas e inesgotáveis, adejam as suas preces. Agradecem o sol dos novos dias entre aquele pulsar de ondas do mar que trazem na voz. Nela reboam coisas antigas, que são a identidade e a empatia de um povo e os cânticos profundos de um oceano nunca esquecido no rumor das veias.
Eduardo Bettencourt Pinto nasceu em Gabela, Sul de Angola, em 1954. Viveu em vários países após 1975, residindo actualmente no Canadá. É funcionário estadual, consultor informático e editor da revista literária Seixo review, na Internet. Escreve para publicações no Canadá, Estados Unidos, Portugal e Brasil. Publicou vários livros de poesia e ficção. Está representado em várias antologias, nos Estados Unidos, Reino Unido, Portugal e Brasil. É membro do P.E.N Clube Português. O seu livro mais recente, Travelling with Shadows uma edição bilingue (Português-Inglês), foi lançado recentemente no Canadá.
Página do autor: http://www.eduardobpinto.com
Notas: Texto publicado originalmente na Revista Magma,nº7, editada pela C.M. das Lajes do Pico,2008. Comemorativa aos 260 anos do Povoamento Açoriano no Sul do Brasil.
Fotos/legendas:1.AÇORES: Travessia do Canal Faial-Pico; Fajã,Ilha de São Jorge (2008). 2.SANTA CATARINA: Praia das Palmeiras; Descendentes açorianos do Rio de Janeiro e Santa Catarina dançam a comunhão fraterna do presente; Praia do Pântano do Sul (2009)
Imagens: LPSNunes