CANTORIA

(O Bravo) 

Tu não queiras fazer troça
Porque muito pouco cantas;
Se não eu dou-te uma coça
Que nunca mais te levantas.

Cala a boca chalaceiro,
É melhor que tu te cales,
Porque um pasto rapeiro
Vale mais do que tu vales. 

Ó que grande ignorante
Da nossa ilha Terceira,
Só quem é extravagante
Tem sonhos dessa maneira. 

Este grande charlatão
Não medita no Além,
Toda a vida um intrujão
E julga que canta bem.

Este pobre arrepiado,
Sempre a cantar falsamente,
Anda-me um enfesado
Que nem tem cara de gente.

Folhetos de quadras lindas
Não são das tuas asneiras.
São de luzes do Além vindas
Que vejo noites inteiras.

Não estais cantando bem,
Que maldita hipocrisia,
São espíritos do Além
Que me fazem companhia. 

Eles não ligam à matéria,
Sua missão é mais calma,
Não querem essa miséria,
Preferem a luz da alma.

Tu canta-me agora a sério
P’ra seres alma valiosa,
Não manches o teu critério
Nesta Ilha Graciosa.

(O Tenrinho)

Este Bravo é afamado,
É primeiro e não segundo.
Diz-me como tens passado,
Co ‘as almas do outro mundo?

Embora fique de rastos,
Este Bravo não me escapa,
Diz-me lá se os teus pastos
Já estão limpos de rapa.

Bravo, ninguém te condena
Por seres dos homens espertos,
Mas eu tenho muita pena
Os sonhos não serem certos.

Tu dizes cantigas ricas,
Mas deves de ser pacato.
Tenho pena quando ficas
Tão bravo como o Mulato.

Lá por ti tens o prazer
De teres a cara vermelha,
A tua vida é vender
Folhetos na Praça Velha. 

Se encontras um freguês
Que te dê algum escudo,
Dessas comédias que vês
À noite por um canudo.

Eu a razão não te dou
Nem a esses espíritos castos,
Porque nenhum te arranjou
Comprador p’ros teus pastos.

Vês diademas e cruzes
Nessas horas tanto belas,
Como o Além te dá luzes
Não tens petróleo nem velas.

Estive a brincar contigo,
Não tomes isto a sério.
Serei sempre teu amigo
Até ir p’ro cemitério.

O Bravo (Manuel Borges Pêcego – 1876-1945) e O Tenrinho (José Gonçalves Martins – 1884-1945), improvisadores terceirenses, o primeiro nasceu nos Biscoitos e faleceu em Santa Luzia; o segundo nasceu e faleceu na freguesia de Santa Bárbara.

FOTO de Luciano Barcelos. Novos cantadores dos Açores:  Fábio Ourique e Bruno Oliveira.