O Chamador
Um livro pelo qual me apaixonei desde o primeiro momento da sua leitura. Já tinha acompanhado, por descrições na imprensa nacional e nas redes sociais, algumas reacções a este “O Chamador”, de Álvaro Laborinho Lúcio, que conheci, nas minhas lides jornalísticas, como Ministro da Justiça e mais tarde, como Ministro da República. E, para além do aspecto profissional dos nossos contactos, tenho de confessar (isto não é uma declaração de interesses) que fui nutrindo por Laborinho Lúcio um respeito muito especial e uma admiração muito particular que hoje guardo no meu “cantinho de afectos”. Quis Fernando Ranha, Administrador da Ver Açor, brindar-me há algumas semanas atrás com “O Chamador”. Li-o em dois ou três dias, porque, começando, é difícil deixar, embora se trate de um género de romance que nos permite parar e respirar, pensando e remoendo as intenções e as atenções que muitas vezes nos fazem voltar atrás para retomar o fio à meada e perceber coisas que nos parecem desgarradas na primeira leitura, mas que são verdadeiros diálogos interrompidos, para mais tarde retomar.
E se falei no “fio da meada” foi mesmo para realçar o fio condutor de profundo humanismo desta obra de ficção, difícil de enquadrar num único género literário, que, em quadros de “ressurreição da dignidade humana”, proporcionados por maravilhosos diálogos entre um velho encenador e a sua memória, nos leva a uma profunda reflexão sobre o que pode ser a busca da verdade e o confronto entre o real e o virtual que subsiste dentro de cada ser humano.
Laborinho Lúcio achou que agora, depois de tantos anos com tarefas institucionais, podia lar largas à imaginação e depois deste “Alfabeto de vida”, – porque o livro contém tantos capítulos quantas as letras do alfabeto e todos os nomes que desses capítulos constam são mesmo personagens reais que criam imaginários rodeados e embrulhados em linguagem poética que inebria, dulcifica e ao mesmo tempo questiona e inquieta.
Laborinho Lúcio, numa agradável conversa que mantivemos sobre o livro e muitas outras questões, deixou-me a certeza de que outro livro de ficção estará para breve, porque, segundo diz, escritor não é o que escreve e publica. Há uma sensação que faz o escritor e que é aquela que é deixada por quem lê. E se este livro, já apresentando em muitos pontos do país tem tido um grande sucesso, a espera de uma nova obra do autor que até agora havia brindado o público com outros géneros literários, como é o caso de “a Justiça e os Justos”, “O Julgamento”, ou, em co-autoria “Levante-se o Véu”, leva-nos a pensar numa brilhante carreira de escritor que começa aos 72 anos, porque “podia perfeitamente – e por que não? – começar aos 73”.
Laborinho Lúcio nem precisa de ser referenciado como um grande Amigo dos Açores e das suas gentes. E neste livro “O Chamador”, pelo menos em três capítulos, estão as ilhas, as suas gentes e os seus costumes, para não falar do “cheiro” a brisa e mar que se desprende de muitas das narrações de outros espaços do livro.
Falar de “diálogos entre a imaginação e a memória” pode parecer filosófico e transcendente para a leitura quotidiana que fazemos dos acontecimentos. Laborinho Lúcio consegue sublimar o que de mais trivial possa haver numa pessoa. Porque, segundo diz, “todas as pessoas podem ou poderiam ser diferentes consoante as oportunidade sociais e vivenciais.
E esta é uma das riquezas dessa obra ontem apresentada onde teatro e cinema, poesia e romance, circo e vida comum, dão as mãos na ficção que acaba sempre por nos abrir as portas do real: O direito à verdade e à igualdade, porque “é no mar que o Sol se põe. Esconde-se dos montes. Foge das planícies. É para o mar que vai, para aí se lançar no precipício do outro lado do horizonte”.
Com a simplicidade que lhe é característica, Laborinho Lúcio confessa que uma das coisas que mais lhe agrada no livro é que, das muitas reações que tem recebido, e quando lhe referem ou salientam um capítulo de que mais gostaram, o mais curioso é ser difícil haver uma repetição de gostos, o que prova que, em cada capítulo, que constitui sempre um quadro único e completo há uma sensibilidade que não atinge todos por igual e por isso mesmo seu autor afirma que aquele não é um livro completo, é um livro que se completa com o leitor. E é mesmo!
Uma frase apenas: “A verdade que é aceite como tal corresponde tão só a uma expressão do poder”. A frase, no dizer do autor do livro surge num diálogo entre o encenador teatral que valoriza a imaginação e a memória que valoriza a verdade dos factos e por isso mesmo muitas vezes a verdade é menos produto da razão e mais produto do poder.
Para quem conhece bem Laborinho Lúcio, o seu porte e a sua maneira de estar, a crueza de alguma linguagem do livro pode mesmo chocar. Sem ficar nada espantado com a observação e dizendo que já alguém lhe tinha dito a mesma coisa, o autor diz que no livro não é Laborinho Lúcio a falar nem a dialogar, e por isso mesmo a linguagem é dos ou das personagens, cada uma delas, de A a Z, o Almeida e a Zaida, absolutamente reais, trazidas ao mundo da ficção com todas as ambiências memoriais do autor.
E é isto mesmo que torna o livro tão cativante, de tal forma que como próprio Laborinho Lúcio confessa, para quem gosta, o livro deixa de ser do autor para passar a ser daquilo que os leitores disserem que ele é.
Como já escrevi várias vezes aqui neste espaço, não sou nem tenho pretensões de ser crítico literário, mas sinto que para mim a leitura de um livro de que gosto só fica completa quando sobre ele escrevo, nem que seja para ficar nos meus apontamentos sem publicar. E é, por exemplo, dentro deste espírito que me permito destacar num dos capítulos do livro o realismo com que se fala de ilha, vulcões, lagoas, sustos e medos ao lado de brumas e deuses, mistérios de passado e realidade de presente.
Acrescente-se que “O Chamador” tem chancela “QUETZAL – Língua Comum” e a apresentação que decorreu na Biblioteca Pública de Ponta Delgada, com coordenação da Ver Açor Editores, foi feita por Madalena San-Bento a que se seguiu um debate moderado por Sidónio Bettencourt.
E acho que a melhor forma de terminar etas minhas “Leituras do Atlântico” será deixar aqui o que escreveu Joana Emídio Marques no DN: “
“O Chamador (Quetzal) é um híbrido onde convivem o teatro, o romance, as memórias pessoais, as deambulações pelo cinema e a literatura numa fantasmagoria escrita em prosa poética a que podíamos chamar um “teatro de alma”, pedindo a expressão a M. Teixeira-Gomes.”
Para Laborinho Lúcio, a minha admiração, satisfação e espera pelo próximo. Que não tarde!
Santos Narciso
Nota: O Autor Santos Narciso,açoriano da Ihla de São Miguel.Homem das Letras. Brinda-nos com artigos e resenhas de grande sabedoria e humanidade.
Homem de Imprensa,é director adjunto do Correio dos Açores