(Henri Matisse, Dance, o/c, 1910 )
O cinema que desagua em poesia na obra de Jorge de Sena
Dora Nunes Gago
Jorge de Sena encontra-se vinculado aos Açores através do seu pai, Augusto Raposo de Sena, natural de S. Miguel, de ascendência aristocrata e comandante da Marinha Mercante.
Como grande apreciador de todos os tipos de Arte, Jorge de Sena foi um cinéfilo atento, esclarecido e crítico. Nesta esteira, escreveu diversos comentários sobre cinema, reunidos numa obra intitulada Sobre Cinema (Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1988), organizada por Mécia de Sena.
Na introdução desta obra, D. Mécia salienta o facto de Sena e de o cinema terem crescido juntos, tendo esta paixão sido alimentada, desde tenra idade, por uma avó cinéfila: “Esta paixão pelo cinema jamais a perdeu Jorge de Sena” (Sena 1988:19).
Seguidamente, tentaremos compreender de que modo o universo visual transparece no textual, através, sobretudo, da análise dos poemas de teor “cinematográfico”: “o couraçado de Potemkin” e “À memória de Kazantzakis e a quantos fizeram o filme Zorba the Greek”.
O cinema que desagua na poesia
D. Mécia de Sena salienta a influência cinematográfica na escrita de Jorge Sena, exemplificando, na introdução de Sobre Cinema, com o poema “outra linha”, datado de 1 de Maio de 1939, presente em Post-sciptum II, 2º volume. Com efeito, esse texto abre com uma imagem típica de um filme, onde se cruzam o som e a imagem em versos impregnados de sinestesia: “um ranger igual de linhas com areia…/O comboio naquele continente largo/Em cujo céu tão alto/Cabem ao mesmo tempo a Tempestade e o Sol”. (Sena 1985:127). Seguidamente, é a sensação de movimento em diferentes ritmos que domina: “A curva…. Crispavam-se as ferragens…/Árvores apressadas…/Outras mais longe devagar…/Outras mais ainda… balouçando os ramos e rodando…(Sena, 1985: 127). E a “câmara” do poeta prossegue a sua “filmagem”, oscilando entre um plano geral da planície amarela, com verdura em molhos, para se deter, depois num “grande plano” de uma “pedra redonda muito alta, /Cinzenta desirmanada, lisa…” (1985:127). Depois, são as outras imagens que invadem o ecrã do poema para se sobreporem através da memória: o mar, com peixes, tubarões, conchas, um navio velho ancorado, sem pintura, sem mastros, aliados ao som longínquo dos tambores. Por fim, o ranger da areia funde-se na imagem das praias de Lobito, alargadas a uma recordação africana, através dos seguintes versos: Tudo! Lembrar eu isto com m ranger de areia! / Só porque aqui – carro eléctrico…rua em obras… linha[suja!…” (1985:127).
Todavia, encontramos outros exemplos de uma assumida aliança do universo visual cinematográfico ao textual. Um dos casos ilustrativos desse mecanismo de transposição entre os dois universos é o poema “o couraçado de Potemkin”. Escrito por Jorge de Sena, em S. Paulo a 23/12/1961, este texto deveria, inicialmente, ter integrado a colectânea Peregrinatio ad Loca Infecta, mas que foi retirado dela, por ser impossível a sua publicação naquela época. Segundo referiu o autor, numa nota, o poema espelha a profunda impressão causada pelo filme de Eisenstein, mas também algumas esperanças depositadas, naquela altura, no alvorecer de um futuro democrático para Portugal.
No que toca ao “couraçado de Potemkin”, realizado por Serge Eisenstein, em 1925, considerado um dos marcos da história da Sétima Arte, importa referir que se baseou num facto histórico, ocorrido a bordo do navio de guerra da Frota do Mar Negro da Rússia. Tal evento materializou-se em Junho de 1905 com a revolta da tripulação do couraçado de Potemkin, impulsionada pelas condições precárias. Neste contexto, o filme tornou-se uma obra universal, emblemática, sobre a injustiça, e o poder colectivo que impregna as revoluções populares.
Então, o poema, intitulado “o couraçado de Potemkin”, projecta a rebelião da embarcação russa para um cais da segunda metade do século XX, parecendo iniciar-se com as cenas finais do filme: “Entre a esquadra que aclama/ o couraçado passa./ Depois da fila interminável que se alonga/ sobre o molhe recurvo na água parda” (1978:55). Assim, o navio trilha o seu percurso sereno, sem pressa de chegar, embalado pela dissonância entre a revolta e a esperança. Aliás, o filme termina com a comemoração da fraternidade, pois o “Potemkin” envia uma mensagem para a esquadra, incitando os outros barcos a aderirem à Revolução, o que ocorre.
A seguir, através de um flash back, ou em termos literários, de uma analepse, evidencia-se um recuo temporal para retratar célebre e clássica imagem da escadaria de Odessa, que surge na quarta parte do filme – dividido em cinco partes). Nesta cena, uma mãe é assassinada e o carrinho de bebé desce degraus abaixo. Neste contexto, a escada encerra em si a simbologia da cruel hierarquia social e política, a diferença entre as classes sociais. Este símbolo, embora possa ter também uma conotação positiva, representando uma progressão, reveste-se aqui de um aspecto negativo, simbolizando a descida, a queda, a regressão, que resume todo o drama da verticalidade.
Escreve então o poeta: “depois do carro de criança/ descendo a escadaria,/ e da mulher de lunetas que abre a boca em gritos mudos, /o couraçado passa”/ A caminho da eternidade. Mas/ foi isso há muito tempo, no Mar Negro./” (1978:55). É ainda nesta parte do filme que se desenrola o massacre do povo de Odessa pela guarda imperial do Czar. O sofrimento calado, indizível é transmitido através dos gritos mudos, porque mudo era o cinema da altura, mas também porque a mudez de um grito encerra uma dor insuportável, cuja sonoridade ecoa na poesia.
(cont.)
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