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A relação espaço/tempo, abordada de forma ímpar no filme, é aqui transposta através da utilização de expressões configuradoras dessa relação: “depois”, “há muito tempo”, evoluindo depois para uma dimensão atemporal, através da alusão à “eternidade”.
A seguir, na segunda estrofe, é notória uma projecção universal de denúncia da injustiça e da violência, tão presentes no filme: “No cais do mundo, olhando o horizonte,/ as multidões dispersas/ esperam ver surgir as chaminés antigas,/aquele bojo de aço e ferro velho”(1978:55). A imagem metafórica do “cais do mundo” espelha bem a esperança de que um dia, todos os “marinheiros” do mundo, oprimidos, injustiçados, possam esperar por um navio salvador, ou permanecendo em terra firme, se recusem a engolir a carne podre, imposta ao longo dos tempos.
Então, numa estrofe impregnada de dramatismo, visualismo e acção, transmitidos através dos verbos conjugados no presente, o poeta constrói imagens fragmentárias, projectadas e actualizadas no seu tempo, no tempo das ditaduras e da falta de liberdade: “Uns morrem, outros vendem-se, /Outros conformam-se e esquecem e outros são/ assassinados, torturados, presos. /Às vezes a polícia passa entre as multidões, / e leva alguns nos carros celulares.” (1978:55). No entanto, mesmo perante este cenário de medo e opressão há sempre alguém que resiste e alimenta o sonho da liberdade: “Mas há sempre outra gente olhando os longes, / a ver se o fumo sobre na distância e vem/ trazendo até ao cais o couraçado.” (1978:56).
No entanto, o couraçado tarda e o tempo ganha a densidade do desespero, assumindo a mesma tensão do filme. E neste cenário de ansiedade, tensão e desespero, apenas a luz da esperança vai ganhando maior intensidade, culminando na penúltima estrofe com os verbos no futuro do indicativo: “Há-de vir e virá. Tenho a certeza/ como de nada mais. O couraçado / virá e passará/ entre a esquadra que o aclama.” (1978:56).
No final, fundem-se o passado e o presente, para terminar com uma afirmação que enfatiza a última esperança: “Partiu há muito tempo. Era em Odessa,/ no Mar Negro. Deu a volta ao mundo./ O mundo é vasto e vário e dividido, e os mares/ são largos./ Fechem os olhos,/ cerrem fileiras,/ o couraçado vem.” (1978:56).
De novo, então, a evocação do espaço concreto (Odessa), e no final o apelo “Fechem os olhos / cerrem fileiras”) (1978:56). Num poema dominado pelo universo visual, não deixa de ser curioso e quase paradoxal o apelo feito pelo poeta, através da utilização do imperativo. Contudo, o facto de apelar a que “fechem os olhos” será uma forma de evasão da realidade circundante, de modo a mergulhar de forma mais intensa no reino da esperança, para acreditar mais veementemente que “o couraçado vem” (1978:56).
Assim, este poema construído a partir de um filme emblemático da defesa da liberdade, no qual a violência é concebida como aberração e o couraçado significa sobretudo um processo qualitativo de transformação, um hino à defesa da liberdade artística e humana, revela precisamente a faceta profundamente humanista de Jorge de Sena. É, no fundo, a sua concepção da vida, da violência, a condenação da tirania, sempre iluminada pela centelha da esperança, que este filme lhe parece ter despertado, consubstanciando-se em poesia. Neste caso, podemos, inclusive, aludir a uma citação feita por Roberto Nobre de Schwob (1920): “São as raízes do ser, (…) é essa fermentação subterrânea, fora do qual todos os nossos pensamentos desabrocham no ponto de tangência do nosso ser mais secreto e o mais ignorado de nós próprios, com aquilo que nós nos orgulhamos de ser, que o cinema nos faz enfim atingir.” (Nobre, 1939:200). Terá sido nitidamente este o efeito provocado por este filme no poeta.
Outro poema apelidado de cinematográfico, tem como “mote” um filme, cujo cenário também é banhado pelo “Mar Negro”, intitula-se “À memória de Kazantzakis, e a quantos fizeram o filme Zorba the greek” e integra a Peregrinatio ad loca infecta, 1969.
Com efeito, Kazantzakis, autor muito admirado por Jorge Sena, é considerado um dos maiores escritores gregos do séc. XX, tendo vivido também as amarguras do exílio, visto ter sido considerado um autor proibido.
Então, o poema inicia-se com uma frase: Deixa os gregos em paz, recomendou/uma vez um poeta a outro que falava/de gregos”. (1978: 86).
No fundo, Sena partilha com o escritor grego a imagem de uma Grécia real, veiculada pelo filme, que se afasta de um estereótipo concebido pela memória ocidental. O que ele admira é o espaço habitado por homens reais, de carne e osso, que destoa de uma Grécia idílica, utópica, reino de deuses e de alvas estátuas. É essa realidade que habita o filme que, muito resumidamente, narra a história de Basil, um escritor greco-britânico, proveniente da Inglaterra, que, impulsionado por uma crise de criatividade, decide ir para Creta, terra natal do seu pai. Enquanto aguarda para embarcar no navio que o conduzirá à ilha, conhece Zorba, um grego simples e entusiasmado, com vários alcunhas, segundo ele próprio refere – sendo um deles “Epidemia”, graças ao seu “dom” para espalhar o caos. Zorba simpatiza com Basil e torna-se seu companheiro de viagem, disponibilizando-se para trabalhar com ele na mina herdada do pai.
Toda a acção é atravessada pelo constante conflito entre os costumes dos aldeões locais, por vezes marcados por alguma agressividade, e os padrões culturais e comportamentais do estrangeiro recém-chegado. É o tom realista, humano, genuíno com que se configura essa Grécia real, que como já verificámos, seduz Jorge de Sena, por isso, afirma:
Apenas Grécia nunca houve como
essa inventada nos compêndios pela nostalgia
de uma harmonia branca. Nem a Grécia
deixou de ser – como nós não – essa barbárie cínica,
essa violência racional e argua, uma áspera doçura
do mar e da montanha, das pedras e das nuvens,
e das caiadas casas com harpias negras
que sob o azul do céu persistem dentro em nós,
tão sórdidas, tão puras – as casas e as harpias
e a paisagem idem – como agrestes ilhas
sugando secas todo o vento em volta. (1978:87)
Deste modo, o que surpreende e cativa o autor, neste filme, é a autenticidade, o pulsar da vida com todas as suas facetas negativas e a brutalidade que lhe é inerente, pois: “(…)- há nisto, /e na rudeza com que a terra é terra,/e o mar é mar, e a praia praia, o tom/ exacto de uma música divina” (1978:88).
Assim, a única divindade possível reside precisamente na humanidade – esta é uma das premissas senianas, para quem apenas o humano se encontra imbuído de um teor divino. E, sem dúvida, esta é uma característica que habita este filme, anunciador do poder da amizade, da solidariedade, da força da esperança e de uma certa dose de loucura associada à liberdade. Basta recordarmos a cena em que Zorba diz a Basil que ele tem tudo, mas que lhe falta a loucura e que sem ela, “nenhum homem vai ousar soltar-se e ser livre” (Cacoyannis, Michael 1964).
Por conseguinte, a grande lição que a Grécia nos dá, através deste filme, segundo Jorge de Sena, é apenas esta:” (…) o viver com fúria, este /gastar da vida, /este saber que a vida é coisa que se ensina, /mas não se aprende. /Apenas/pode ser dançada”. (1978: 86).
É com esta notória alusão ao final do filme com a dança de Zorba, convertida num dos arquétipos do cinema mundial, que o poema encerra.
Em suma, podemos concluir que Jorge de Sena sempre considerou o cinema como uma arte essencial na representação e descoberta da História, do Mundo, da vida, do Homem, pois como referiu Edgar Morin “O cinema é, por essência, tão indeterminado e aberto como o próprio homem” (1980:193).
Entrecruzando o universo visual e sonoro com o literário, estes poemas de inspiração cinematográfica, sintetizam as convicções artísticas, poéticas e pessoais deste prodigioso autor. Então, se no Potemkin o universo visual do cinema convoca o textual para condenar as injustiças, as atrocidades, a opressão que vítima tantos seres humanos, lançando um grito de revolta, de defesa da liberdade, neste último, encontramos a apologia da amizade, da autenticidade, da liberdade, do humano em contraposição ao divino. Isto porque é necessário desfazer os estereótipos, viver de forma verdadeira, intensa e autêntica, já que a vida apenas “pode ser dançada”.
Bibliografia:
GAGO, Dora Nunes – “Entre o Universo visual e o textual: imagens do cinema na obra de Jorge de Sena (comunicação apresentada na Conferência Internacional de Cineme de Avanca (Julho de 2012), publicada no volume de Actas e no site “Ler Jorge de Sena”: http://www.letras.ufrj.br/lerjorgedesena/port/ressonancias/estudos/texto.php?id=388
LISBOA, Eugénio (Org.)(1984). Estudos sobre Jorge de Sena. 1.ª ed. Lisboa: Edições Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
LOTMAN, Yuri (1978). Estética e Semiótica do cinema (trad, da versão francesa de Alberto Carneiro), Lisboa, Imprensa universitária, Ed. Estampa, Lisboa.
METZ, Christian (1968). Ensaios sobre a Significação no cinema, Paris, ed. Klincksieck.
MORIN, Edgar (1980). O cinema ou o homem imaginário, 2ª ed.(trad. António Pedro Vasconcelos, Lisboa, Moraes Editores.
NOBRE, Roberto (1939). Horizontes do Cinema, Lisboa, Guimarães Editores.
SALLES, Luciana dos Santos – Poesia e o Diabo a Quatro: Jorge de Sena e a escrita do diálogo, Rio de Janeiro, UUFRJ, 2009, dissertação de doutorado publicada em http://www.letras.ufrj.br/posverna/doutorado/SallesLS.pdf, acedida a 15 de Maio de 2011
SANTOS, Emmanoel – “Jorge de Sena: textos sobre cinema”, SANTOS, Gilda, org., Jorge de Sena em rotas entrecruzadas, Lisboa, Cosmos, 1999, 69-76.
SENA, Jorge (1978). Poesia III, Lisboa, Círculo de Poesia, Moraes Editores.
SENA, Jorge (1985) Post Scriptum II (recolha, transcrição, nota de abertura de Mécia de Sena), co-edição Moraes editores, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
SENA, Jorge. (1988). Sobre cinema. Lisboa, Ed. Cinemateca Portuguesa.
Dora Nunes Gago é professora de Literatura na Universidade de Macau (China), doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas. Foi leitora do Instituto Camões em Montevideu (Uruguai). Publicou: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005; A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga, Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008. Além disso, tem poemas, contos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias.