O Daniel de Sá partiu. A Ilha Grande ficou mais pequena.
Ficámos debaixo da antiga pérgola do jardim do Hotel, onde na primavera se enrolavam os cachos lilases de Glicínias caídas.
Já passava das onze da noite.Estava uma noite quente e húmida de Agosto e eu já não via o Daniel há uns anos valentes, desde que deixara a ilha de São Miguel para vir para Lisboa. Estávamos em Santa Maria, há quatro anos atrás, terra das nossas infâncias, onde já não voltávamos há muitos anos. Um amigo comum, o Mário Mesquita, proporcionara-nos esse reencontro, numa iniciativa do Forum Roosevelt. Fomos ficando a beber cerveja e a recordar a ilha onde crescêramos, pessoas, locais, histórias. Às vezes ficávamos em silêncio por algum tempo e só se ouviam as cigarras ali no mato em volta que separa a Belavista e o Hotel da estrada do meio e da Brasília.
O Daniel fala de Santana onde vivera, ali a um quilómetro do caminho de baixo, mas onde a estrada não chegava nos anos cinquenta.
Fala pausadamente, com a simplicidade que o caracteriza e com que sempre vive, mas as palavras e as ideias fluem com a riqueza de uma cultura imensa e uma sensibilidade delicada. Evoca os professores do externato que frequentámos ,o sacrifício dos Pais par que estudasse, a morte do pai tão novo e como essa notícia o atingiu pela violência e pelo inesperado. Diz-me que o Pai trabalhara na construção da Torre da Igreja. Essa?… A de Nossa Senhora do Ar, aquela onde tomámos a primeira comunhão e que ardeu? Essa mesmo…O Daniel confirma-me. E fala-me dos anos difíceis da infância, da escola e dos colegas. Fala-me de meu Pai seu Professor com um carinho que me deixa lágrimas nos olhos. Na minha casa, o Daniel sempre foi apontado pelo meu Pai como um exemplo a seguir, de inteligência, de honestidade, de carácter.Uma referência para mim.
As horas rolaram e não me canso nem de o ouvir nem do prazer de o rever.Já a noite esfria e a cerveja desaparece e continuam as recordações e os locais. Falou-me de uma pedra onde tinha feito uma marca em criança, no caminho para Santana e de como a encontrara outra vez, indo directamente ao seu encontro, tantos anos depois. Lá estava a pedra e o tempo parou então naquele momento, como se nunca tivéssemos saído da ilha. E penso então como é possível que o Daniel um dos grandes escritores Portugueses contemporâneos, não seja conhecido do seu País e de como afinal mesmo na escrita, não saíra da sua ilha. E de como estamos condenados a esse silêncio e desconhecimento se ficamos na ilha ou de como sofremos tanto se a deixamos. E o Daniel diz em “Ilha Grande fechada” que “sair da ilha é a pior maneira de ficar nela”…
Não nos voltámos a ver. Trocávamos emails e saudações ,promessas de uma visita à sua Maia do Coração de onde raramente saía.
A notícia chegou-me assim inesperada hoje à tarde-O Daniel partiu!
Simples e sábio, socialista e humanista, homem de Fé, escritor da nossa gente , do seu sofrimento e da sua Grandeza e um amigo de referência que perdi.
Há algum tempo ele escrevera a Batista Bastos, admirador como ele do Padre António Vieira, o texto bonito que aqui deixo.
Vieira não o faria melhor….
“Senhor,
Dá Deus o dom da fala a todos os homens, mas a alguns somente o da palavra. Porque também os tontos falam, pelo que não é à míngua de inteligência que há quem não fale; e falam os néscios, pelo que ao falar não faz falta o entendimento; e falam os brutos, pelo que ainda que aos homens falte a sensibilidade, sendo mudos não o serão por causa disso.
Mas ao dom da palavra se requer inteligência, entendimento e sensibilidade. Inteligência, para saber o que convém ser dito; entendimento, para discernir como se deve dizê-lo; e sensibilidade, para escolher o momento oportuno em que o ouvinte seja disposto a ouvir.
O dom da palavra pode abrir os ouvidos que teimam em estar fechados ou fechar os ouvidos que sempre estão abertos. Porque há aquilo que deve ser ouvido, e há quem não queira ouvir; e há o que não convém que seja ouvido, e abunda quem queira ouvir.
A vós, senhor, deu Deus o dom da palavra. E muito me regozijo porque haveis sido lembrado para lembrar o dia em que minha mãe me pôs no mundo, para nele ficar até quando o Senhor das nossas vidas for servido. Porque desde o dia em que nasci muitas vezes morreram mil vezes mil homens, e eu continuo vivo, não por mérito meu senão pela graça de Deus e pela bondade de corações como o vosso.
Desculpai-me, senhor, se tão mal ditei esta carta que quem ma escreve não a entendeu bem, ou se, ditando-a eu como devia, não fui entendido como convinha.
A rogo do P. António Vieira, S. I., por não poder escrever,
Daniel de Sá”