Parafraseando Miguel Real acerca do pensamento de José Enes, no tocante aos Açores,
entre várias ideias, saltam as seguintes: Nos Açores, há uma discrepância entre o progresso científico e o moral. Nos Açores, arquipélago isolado, divorciado do todo mundial, não há mobilidade social de grupo ou de classe. Enquanto na Europa, os sindicatos procuram uma melhoria para os seus representados, nos Açores – onde a concorrência já está eliminada – as empresas procuram assegurar a maior margem possível de lucro através de um sistema de influências. O clero, por seu lado, mantém-se desligado de práticas modernas de apostolado e de novos processos de espiritualidade, limitando-se à administração dos sacramentos com um pietismo onde se salientam as festas dos santos com cortejo e manifestações folclóricas. Conclui José Enes que, nos Açores, existe o “ desconhecimento e uma certa descrença com respeito à técnica e às suas inovações. Daqui a impressão de imobilidade e de impotência consentida perante as perspectivas novas”.
O Filósofo
Entre os anos de 1976-2000, José Enes dedica-se à Filosofia, mas não se separa das estruturas políticas e sociais dos Açores. Pelo contrário, o seu interesse pela açorianidade mantém-se, de sobremaneira, vivo, agora, na função de fundador e primeiro reitor da Universidade dos Açores. Filosoficamente, José Enes, que confessa que desde dos dezasseis anos se familiarizara com as grandes escolas e correntes tomistas, propõe-se “regressar humanisticamente à metafísica…na sua fonte primeva, a grega de Aristóteles, lida pela inspiração de São Tomás de Aquino”. É assim que José Enes chega À Porta do Ser, uma obra de meio milhar de páginas, onde segundo Miguel Real “se descobrem algumas das páginas filosóficas mais originais que se têm escrito sobre o acesso ao Ser, em língua portuguesa…O seu intento é, nas suas palavras (de José Enes) ‘acordar’, na língua latina e noutra dela derivada (a língua portuguesa), o processo de pensar por que, falando-as, o homem acede ao Ser’. A reelaboração linguística do português assim empreendida, no ‘recesso às origens’, utiliza uma análise e recriação da fala, como método de acesso (ao Ser) “.
A Utopia do Sebastianismo
Em 1984, José Enes é convidado para proferir, em Ponta Delgada, a conferência comemorativa dos dez anos da revolução do 25 de Abril de 1974. Inicia o seu discurso afirmando que se celebra a “instauração de uma nova ordem social programaticamente melhor do que a que antes vigorava” permitindo que os Açores tivessem conseguido “com êxito até então não alcançado” uma “forma de governo próprio” que ultrapassa o eufemismo de “ilhas adjacentes”.
Em discurso feito em 1987, José Enes faz uma interpretação pessoal da história político-social de Portugal à volta do mito de D. Sebastião. Diz Miguel Real: “O autor considera que na fonte da soberania do Estado tem prevalecido um discurso messiânico que singulariza a nação e o diferencia dos restantes Estados”. Face às “sucessivas crises nacionais” Portugal teria “de projectar em alguém, que simbolizasse as melhores virtualidades da grei, as ideias de predestinação e de redentorismo, que poderiam propiciar a política de viragem, indispensável à consagração do país”.
O anticlericalismo dos dirigentes políticos da I Republica – que tinham em mente por fim à religião – provocou uma reacção clerical de natureza messiânica por parte da Igreja Católica em Portugal. É assim que as “aparições de Fátima” lançam Portugal numa “nova missão mundial” de natureza religiosa com a alusão à conversão da Rússia, o segredo de Fátima e peregrinações nacionais e internacionais de grande projecção.
Segundo José Enes, a “guerra do Ultramar” que “se desenvolveu durante treze anos como um longo Alcácer Quibir” e a “utopia marxista da vitória da classe operária” adoptada pelo novo Estado a seguir ao 25 de Abril de 1974 são outros dois modelos de uma “decisão sebastianista”. O pensador prossegue: É assim que uma vez mais o povo português continua “divorciado dos discursos ideológicos de fundamentação do Estado”. José Enes tenta provar que, no contexto histórico, o sebastianismo foi o “refinamento do esquema accional de como em Portugal os agentes políticos determinam o acontecer do curso da história”. “Para ultrapassar o sebastianismo, José Enes propõe para a completa modernização de Portugal, o racionalismo da eficiência técnica e científica”.
Conclusão
Ao terminar a leitura do livro de Miguel Real “José Enes – Poesia, Açores e Filosofia”, o leitor sente a satisfação própria do aluno que aprendeu a lição, ou, pelo menos, uma boa parte dela e nutre sentimentos de gratidão para com o seu professor. Miguel Real cumpriu magistralmente a missão de dar a conhecer o pensamento filosófico-literário e a acção de José Enes em prol do desenvolvimento dos Açores. Miguel Real apresenta José Enes como o filósofo em busca das últimas causas das coisas e aí José Enes surge como o grande pensador português do século XX. Mas também fica esboçado o retrato da outra faceta do interventor na vida cívica, social da sua terra, os Açores.
José Enes, o intelectual que soube aliar o pensamento à acção, apelou pelo uso da razão nos seguintes termos: “o grande perigo do homem está em ele não aplicar a sua actividade conhecitiva a todos os sectores da sua vida, em não raciocinar por completo a sua existência”. Tinha razão Jorge Trigo, director da Colecção “Fonte de Palavra”, ao definir José Enes em quatro palavras: Um Homem do Saber.
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Sobre o autor Nuno A.Vieira:
Nasceu na Ilha das Flores, Açores, no ano de 1942. Fez seus estudos até o nono ano no Seminário de Angra do Heroísmona Ilha Terceira. Emigrou para os Estados Unidos em 1968. Licenciado em Humanidades e Ciências Sociais pela Universidade de Massachusetts em Dartmouth e Mestre em Educação Bilingue (ensino do Inglês,Segunda Língua, no Boston State College.Diplomou-se, pelo Departamento de Educação de Boston, em Português, Espanhol, Latim, Inglês e Psicologia Escolar. Por 36 anos lecionou Espanhol, Latim e Português, no Liceu de Stoughton, na área de Boston. Há cerca de 20 anos é professor de Espanhol, Latim e Português em Universidades do estado e particulares,na área de Boston. Nos últimos anos, tem sido uma presença constante nos jornais Portuguese Times (New Bedford), A União (Terceira), Sol Português (Toronto), As Flores (Ilha das Flores) e na revista Atlântida com a publicação de inúmeros artigos.