O DRAMA DA FARRA DO BOI NO BRASIL
O que é a farra do boi? Antigos farristas descrevem-na como “boi de campo”, “boi-no-campo”, “boi-na-vara”, “boi-no-laço”, “boi-no-arame”, “boi-solto”, “brincadeira-de-boi” ou simplesmente “Boi”. Tais denominações referem-se em primeiro lugar, ao que se sucedia na comunidade quando um boi reagia violentamente às tentativas de “apartação” da manada. No cotidiano das atividades agrícolas e domésticas dos açoriano-brasileiros, o gado servia e ainda serve para o transporte, tração e alimentação. No entanto, não havia grandes criadouros no litoral. Seu abastecimento em maiores estoques advinha de outra corrente de povoamento do Brasil, o tropeirismo, que em levas periódicas, trazia o gado em tropas dos campos de serra acima para o litoral.
O “boi-no-campo” catarinense não se configura como uma dança dramática – a exemplo dos folguedos dos bois bumbas brasileiros. De outra forma, é um combate dramático, uma tauromaquia popular. Um “boi-de-campo”, necessariamente bravo, arisco e corredor, é escolhido e comprado por um grupo de farristas, mediante uma lista de sócios. Escolhido, é transportado para a comunidade e solto em locais previamente decididos pelos sócios. A soltada do boi reveste-se de uma euforia inigualável. São centenas de pessoas aguardando a chegada do animal, anunciada por foguetes e buzinas durante todo o trajeto. A partir daí, passa a ser objeto de brincadeiras, pegas, correrias, lides, procuras, ataques e fugas – em lugares os mais diversos: normalmente onde há mato, pastos, morros e praias; também se dá em áreas marcadas e cercadas; em bairros, praças e ruas centrais das cidades e vilarejos. Cria-se uma atmosfera imprevisível, pois a expectativa dos farristas é brincar com a fúria do boi bravo. Tais brincadeiras ocorrem intensivamente na Semana Santa, quando no o sábado de Aleluia, o boi é recolhido. Durante todo o tempo da festa não se notam regras de exclusão baseadas em sexo, idade, ou autoridade, mas a valorização da decisão individual em querer participar, o que significa que cada um responsabiliza-se e adéqua-se aos parâmetros que legitimam a brincadeira. O limite ético está na diferença estabelecida no meio nativo entre o que seja “brincar” ou “judiar” do boi.
A descoberta do litoral de Santa Catarina como área turística balneária (anos 80) vai provocar profundas transformações nas tradições culturais das comunidades litorâneas. A ocorrência das farras que se dava nos escampados e era digamos assim, endógena às populações nativas, ganha intensa visibilidade, passa a depender das áreas ainda disponíveis e também do nível de tolerância dos novos moradores que vão se fixando nas zonas de veraneio. A emergência de um novo padrão de consumo turístico vai requerer uma cultura da diferença palatável ao novo padrão de consumo. As farras nativas fogem brutalmente deste padrão de consumo e tornam-se objeto de campanhas publicas, processos criminais, repressão do Estado e estigmatizarão difusa.
Este movimento foi tão forte e permanente – para o período de duas décadas – que estas tauromaquias perderam o status de tradição cultural popular, se comparadas a outras tradições locais como o Pau-de-Fita, o Boi-de-Mamão, o Terno-de-Reis e as folias e culto do Divino Espírito Santo. Ocorre que o cantador do Terno, o dançador do Auto e o folião do Divino, em muitas comunidades é também o “farrista” do boi.
A despeito de sua proibição em território nacional, fato dado em 1997, estas manifestações continuam ocorrendo, ano a ano, mas infelizmente em um ambiente dramático, de um lado, com fuzilamento de animais pela policia militar e detenções de farristas, e de outro, sem o ordenamento necessário para tornarem-se, contemporaneamente, aceitáveis pela ordem publica e sociedade civil. Recentemente (em 2008) uma tentativa louvável de ordenamento ocorreu na cidade de Governador Celso Ramos, tendo a população apresentado projeto de lei de origem popular, regulamentando o costume com regras baseadas no ordenamento do Arquipélago dos Açores. Entretanto, nova ação do Ministério Publico sustou o processo nos tribunais, estando hoje o caso na forma como sempre esteve: as farras ocorrem á revelia das leis, enquanto signos de resistência cultural.
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Sobre o Autor: Eugênio Lacerda.
Bacharel em Ciências Sociais com mestrado e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisador dos mais competentes na área de patrimônio Imaterial. Integra como pesquisador e analista o quadro funcional da Fundacao Catarinense de Cultura, tendo criado, inúmeros programas governamentais, com destaque para o Programa Estadual do Patrimonio Imaterial. Atualmente é coordenador do Nucleo Gestor de Projetos Culturais da Instituição. Professor de graduacao e pos-graduacao em Antropologia e Cultura Brasileira da Universidade Barriga Verde. Colaborador do Nucleo de Estudos Açorianos e do Instituto Cultura em Rede. Publica com frequência artigos e resenhas em periódicos especializados, anais de eventos e coletâneas. Publicou em 2003 o livro “Bom para brincar, bom para comer – a polemica da “farra do boi no Brasil”.
Presidiu em 2009 o festival folclorico de Parintins- Amazonas.
Eugênio Lacerda é um nome dos mais respeitados seja pela sua competência profissional,seja por sua sabedoria e sensibilidade para as manifestações mais significativas da cultura do litoral catarinense,em particular a nossa herança açoriana sobrevivente.
Tem se destacado na esfera pública por sua atuação firme no resgate e preservação do Patrimônio Imaterial e como um grande defensor da brincadeira da Farra do Boi, o folguedo popular que na semana que antecede a Páscoa toma conta do litoral catarinense.
Eugenio Lacerda é uma VOZ jovem a falar com segurança e maturidade das coisas que são partes da nossa herança. Uma voz forte na defesa da Identidade Cultural de Santa Catarina.