O empenhamento de um professor açoriano na China
Quando veio para Macau, no navio que o trouxe (…que navio? Pouco importa) poderia ter ficado por Timor. Nesses tempos os navios de carreira de Portugal atravessavam o Canal do Suez, aportavam a Goa, seguiam para Díli e terminavam a viagem não em Macau, que não tinha porto de águas profundas suficiente, mas em Hong Kong, onde era o fim da carreira, depois eram os ferry-boats que traziam os passageiros ao seu destino final. Macau. Sendo assim, por mais um pouco, teria aportado à Nova Zelândia, mas não. A Nova Zelândia era longe demais e inglesa demais. Não! Não desembarcou em Timor, que seria o ponto mais perto do dito arquipélago dos antípodas (e o sítio onde o Sol nascia primeiro no antigo universo português no qual nunca se punha), mas sim aqui nesta terra que fica a algumas léguas (como diziam os geógrafos de quinhentos) “adentro do tratado de Tordesilhas”.
Silveira Machado chegou a Macau talvez como o fado. Apenas porque tinha que chegar.
Foi há muitos anos e só quem se queira lembrar e se interesse por se lembrar disso poderá achar interesse em saber quem era este homem que deixou a vida pouco antes de dobrar os noventa anos de idade e pouco depois de dobrar o segundo milénio. Que quantidade de memórias nos deixou no que disse como professor a uma imensidade de alunos?
Que quantidade de memória deixou nas tertúlias em que participou a uma imensidade de amigos e convivas?
Do que disse como professor primário?
Do que disse como jornalista?
Do que disse como escritor?
Do que disse como poeta?
Mas o que terá deixado de dizer?
Muito disse e deixou escrito. Basta consultar os jornais, ou comprar nas livrarias os livros que escreveu.
Do que disse apenas aos amigos em conversas particulares e fora de horas só os seus amigos podem falar.
Eu era amigo de Silveira Machado, mas dele apenas posso recordar certas facetas. Outras, outros as podem recordar
A bibliografia e a hemeroteca (como se houvesse uma hemeroteca em Macau) contêm a personalidade pública de Silveira Machado. Artigos infindos sobre os mais variados assuntos escritos ao longo de décadas n’O Clarim (semanário católico onde escreveu até ao fim da vida) já que nos outros não gastava a tinta da sua caneta por razões éticas (uma ética que só ele sabia qual fosse).
Mas do que disse fora de horas não consta dos arquivos nem da hemeroteca. Consta apenas de memórias que os amigos e familiares conservam. Umas pessoais, mas compartilhadas, outras demasiado íntimas para compartilhar.
O resto encontra-se nas inúmeras entrevistas que deu aos jornais, à rádio e à televisão.
– Professor Silveira Machado (pergunta o jornalista), porque é que tendo sido a sua vida sempre a de escrever e comunicar, nunca fez programas na Emissora de Rádio Macau?
– Por que o que fica escrito fica escrito. O que fica falado perde-se e ninguém se lembra do que ficou dito. Mas nos jornais fica impresso. É indelével!… responde o professor.
(Nesse momento o diálogo perde-se na chegada de dois cafés e dois whiskeys no café o Galo onde nos encontramos quotidianamente)
– Lembras-te do Alecrim? Pergunta-me Silveira Machado.
Alecrim era um radialista dos tempos da Emissora Nacional. Tinha falado primeiro a dizer piadas nos parodiantes de Lisboa na Rádio Graça. Depois, mobilizado para a tropa, passou a falar na rádio oficial de Goa, até ser calado pela invasão. Depois de alguns anos de cativeiro arribou a Macau e retomou o microfone na Emissora de Rádio Macau. Por muitos anos manteve no ar a Rádio Macau com notícias e programas.
– Lembro-me, respondo!
Ah! Diz Silveira Machado, todos o conhecem e sabem quem é mas quem é que se lembra do que disse na Emissora de Rádio Macau? Tantos momentos importantes da vida desta terra que ele disse ao microfone. Quem se lembra do que disse na emissora de Goa, durante a invasão indiana? Perdeu-se tudo e tudo se perde nas ondas da rádio. Mas nos jornais e nos livros não!…
De facto não tenho senão que concordar.
– O Clarim jornal da igreja Católica que bate recordes de existência de entre todos os jornais que se publicaram na história de Macau.
O jornal que mais tempo sobreviveu na história da imprensa portuguesa local foi “O Independente” que andou nas bancas por mais de vinte anos (vinte e um para ser preciso). Depois disso só O Clarim bateu recordes. Silveira Machado colaborou nesse periódico desde o primeiro número no longínquo ano de 1943 em plena “2ª Grande Guerra”. Umas vezes assinando artigos, outras não. Acompanhou os altos e baixos desta publicação que em vésperas de 1999 esteve em dúvida quanto ao futuro, mas que acabaria por sobreviver e renascer como Fénix depois da transição de 20 de Dezembro de 1999.
S. Jorge dos Açores
Silveira Machado! Quem era este homem e de quem descende? Evidentemente que era descendente dos Silveiras, dos Açores família impar na história portuguesa e também na de Macau.
Na sua árvore genealógica abundam figuras interessantes (principalmente pelo lado materno) era Silveira e os Silveira eram descendentes de holandeses. O seu nome ancestral era; – Van Der Hagen (da Silveira, em português), mas geração após geração surgiram filhos e netos e sobrinhos e primos. Os Van der Hagen, de conotações judaicas politicamente incorrectas nesses tempos (e porventura em todos os tempos) desapareceram e deram origem ao sobrenome Silveira (politicamente correcto e cristão como convinha). Silveira Machado que cuidava mais do tempo em que vivia do que da história nunca se importou em saber de árvores genealógicas. Silveira Machado sempre se interessou mais pelo tempo presente. Mesmo que algum antepassado seu tivesse ficado na história e muitos ficaram.
O Ouvidor Arriaga ficou na história de Macau e Manuel Arriaga, também como presidente da República de Portugal. Mas Silveira Machado nunca se importou.
Saiu de S. Jorge, muito cedo com 12 anos. Anos a menos para se importar com pergaminhos
Por isso tornemos presente o passado de Silveira Machado, um descendente de Miguel de Arriaga Brun da Silveira, açoriano da Horta, que governou de facto Macau durante mais de duas décadas nos primórdios do século XIX.
Miguel de Arriaga foi o único Ouvidor de Macau, recordado pela história portuguesa e chinesa neste delta geográfico e foz do Rio das Pérolas. Um marco da história local. Os outros ouvidores, como Lázaro Ferreira, constam apenas de monografias esparsas que só interessam a estudiosos picuinhas e académicos.
Silveira Machado nunca cuidou de saber quem era esse ouvidor, embora o tivesse registado como figura histórica nos seus escritos, n’O Clarim, mas nunca como parente o deu a público, ou o assumiu.
Silveira Machado tinha o quotidiano com que se preocupar e as suas preocupações eram Macau. Não árvores genealógicas e muito menos Manuel de Arriaga Brun da Silveira, seu avoengo e primo (torto), com o qual tinha pouco a haver e muito menos a dever.
Silveira Machado veio para Macau por força das circunstâncias. Não por ser filho de algo mas apenas por ser afilhado de alguém lá da terra açoreana que se interessou por ele.
Mas a verdade é que Silveira Machado não chegou a Macau por acaso, mas sim por que assim estaria talvez determinado pela religião católica que professava. Deus manda que vás!… Disse-lhe um pároco de S. Jorge, provavelmente instruído pelo Cardeal D. José da Costa Nunes, Camarlengo da Santa Sé e esclarecido prelado de Macau que procurava atrair os miúdos mais prometedores das suas ilhas açoreanas para o sacerdócio missionário no Extremo Oriente.
A década de 30 do século XX de Macau
Vamos lembrar Macau desses tempos através dos olhos de Silveira Machado rapazito de treze anos.
No Açores há um dito: “faz-me o que quiseres, mas leva-me para o continente” e Silveira Machado assumiu o provérbio.
– Quero-me ir embora desta ilha pequena. O que é que há aqui?
– Gado! Responde o povoado que vive de vacas e do seu leite.
Para onde? Pergunta o padre.
A pergunta a fazer seria mais exactamente esta: -para a América? Para o Brasil, para as Antilhas, ou para o Continente?
O rapazito de 13 anos sabedor apenas da geografia resumida do Portugal da quarta classe (nos tempos em que havia quarta classe da instrução primária), que passou com aproveitamento, pensou que seria para o Portugal Continental. Não perguntou, ao certo para onde o mandavam. Era criança de mais.
– Bem, já que te queres ir embora vais para Macau, ter-lhe-há dito o pároco e mestre-escola da freguesia de Velas.
E assim Silveira Machado embarcou com onze mais rapazitos seus iguais para uma viagem em direcção aos confins do mundo. Os confins do mundo não eram o final do “mar tenebroso” de Pessoa. Nada disso. Era apenas uma escola secundária. Era o Seminário de S. José de Macau.
Macau? Terá perguntado Silveira Machado; – Onde é? (Creio que o pároco não lhe terá respondido de todo, ou cabalmente, talvez porque não soubesse inteiramente onde era essa parte da Terra (Macau é sítio onde se fazem fósforos e fogo de artifício). Isso era tanto quanto saberia o padre açoreano. Creio que talvez, não lhe interessasse dar nessa altura a um criança lições de geografia universal que um miúdo não compreenderia, nem o padre sabia ao certo onde e como era. Afinal, o pequenito José, ia separar-se dos pais inexoravelmente numa viagem sem regresso. Para quê dar-lhe mais explicações?
– Sabes, disse-me um dia Silveira Machado, há meia dúzia de anos; Eu odiava as vacas e aquelas rotinas de levantar às cinco da manhã para as ordenhar, Acho que tinha oito anos quando percebi que aquela vida não era para mim. Acho que foi isso que me levou a querer deixar S. Jorge.
Confissão feita entre amigos essa de uma década e tal, enquanto organizavamos o projecto de historiar a vida da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM) na qual Silveira Machado desempenhou papel relevante apesar de não ser macaense.
Neste ponto é preciso dizer que para além dos militares que vinham mobilizados (obrigados por força de lei), para a segunda mais oriental colónia portuguesa (Timor era a última em termos de longitude), poucos mais metropolitanos vinham e os que vinham resumiam-se a uns poucos funcionários superiores da administração pública da colónia, médicos, magistrados e engenheiros. O grosso eram militares e os mais restantes eram crianças e essas crianças eram os seminaristas de S. José, como Silveira Machado.
Os funcionários destinavam-se a ficar em Macau por quatro ou seis anos. Se ficassem por mais tempo tinham que o requerer ao Ministério das Colónias (mais tarde do Ultramar) e passavam aos quadros coloniais sendo-lhes permitido ficar pelo Extremo Oriente em comissões sucessivas o tempo que quisessem desde que se casassem com macaenses. Quanto aos militares era quase o mesmo.
O fulgor da Guia dos anos 30
Silveira Machado chegou a Macau num momento em que a colónia conhecia um dos seus períodos de crescendo económico. Eram os anos trinta do século XX.
Nas faldas da Guia construíam-se novas mansões em terrenos até então inexplorados.
Os Senna Fernandes e os Nolasco. Estas famílias anteriormente habitantes do Chunambeiro, lá em baixo junto à Praia Grande, mudavam-se para cima deixando a Praia Grande aos ingleses e americanos. Silva Mendes e Vicente Jorge aderiam ao êxodo e construíam as suas casas também nas faldas da Guia. Depois de quatrocentos anos de vivência nas faldas do Monte e na Praia Grande, a Guia tornava-se o bairro novo dos ricos. Até mesmo Venceslau de Morais, capitão dos Portos fazia questão de reabitar nova casa nesses sítios (hoje chama-se, Calçada do Gaio).
Na altura em que Silveira Macha
do chegou a Macau, a geografia estava em plena mudança. O bairro de S. Lourenço, que tinha como capital comercial a Rua Central, decaía inexoravelmente em benefício da avenida Almeida Ribeiro (Rua Grande dos Cavalos, como é ainda hoje conhecida em chinês – San Ma Lo). O Hotel Central, que se tornaria a partir de então no centro do jogo e do prazer abria-se na San Ma Lou, em 1915, subs tituindo em modernidade e inexoravelmente a Rua da Felicidade, que passaria não haveria década e meia a seguir a não ser mais do que uma rua lateral sem interesse por força do êxodo das cantadeiras que W. Fernandes Flores o famoso escritor espanhol tão bem descreveu quando visitou Macau e se encontrou com Camilo Pessanha nesses tempos passados.
Duas decadências foram as que Flores encontrou.
Uma era a Rua da Felicidade que se evolava nos últimos acordes das cantadeiras.
A outra era a de Camilo Pessanha que se evolava em fumos de ópio.
Tanto o poeta como a rua garantiriam a posteridade e Fernandes Flores que descreveu Macau como uma Fénix que morria apenas para se preparar para renascer algum tempo depois tinham razão.
Macau sempre foi assim. Uma sucessão de antes e depois sempre renovada.
Tudo mudava em Macau.
Mas, Silveira Machado não sentiu essas mudanças porque apenas tinha chegado a Macau no momento exacto em que essa última mudança tinha decorrido havia meia dúzia de anos, sem saber de facto onde tinha chegado (sabê-lo-ia alguns anos mais tarde quando chegou a adulto).
Mas antes, rapazito, nada sabia.
Destinado a ser padre concluiu os cinco anos de liceu necessários para a educação secundária no mundo laico e oficial do estado com aproveitamento e mérito reconhecido por todos os seus professores. Porém entre todas as disciplinas confrontou-se quase no fim do curso com uma negativa a Moral no curso do sacerdócio.
Vamos ver a seguir o que isso lhe acarretou.
Nesses tempos, os seminaristas faziam excursões à ilha da Lapa que nesse tempo era território colonial português, ainda que disputado pela China. Monsenhor Manuel Teixeira (colega de Silveira Machado) fala disso em vários livros e os poucos sacerdotes católicos que ainda hoje restam vivos disso se lembram, nomeadamente D. Ximenes Belo (ex-bispo de Timor) e Domingos Lam (bispo resignatário de Macau). Nessas excursões, nas quais Silveira Machado participou, rapazes e professores encontravam motivos de interesse e ninguém saía frustrado dos passeios. Mas, Silveira Machado, como outros confrades do seminário retirava mais prazer das escapadelas pela cidade, quando podia à revelia dos professores do que nos passeios à Ilha da Lapa, num fim-de-semana, ou numa noite qualquer iludindo a vigilância dos perfeitos (o entardecer de Macau tinha mais encanto do que as tardes mornas da Lapa) escapou-se à disciplina e à castidade.
E foi assim que numa dessas escapadelas, saltando o muro do seminário, Silveira Machado encontrou uma rapariga bonita e perdeu a vocação sacerdotal.
Terminada a incursão desse fim-de-semana o jovem seminarista saído sem saber como da puberdade resolveu traduzir em verso meio-dia (ou apenas algumas horas) da sua vida. Provavelmente nessas parcas horas ter-se-ia sentido Camões, ou Bocage (que também passou por Macau) a conhecer o amor na Rua da Felicidade. Mas caso foi que Silveira Machado se esqueceu que o seminário funcionava como uma caserna de rígida disciplina e que ele próprio estava destinado ao dito voto de castidade.
E assim foi que o perfeito, na rotina diária de revolver camas e colchões e travesseiros à procura de heresias encontrou os debuxos poéticos de Silveira Machado.
-Um poema de amor por uma mulher? Que coisa… Amor é por Deus, Jesus e a Virgem Santa, pensou o perfeito.
E o perfeito, depois de ler os versos não teve remédio senão denunciá-lo ao reitor no dia seguinte.
O resultado seria como não poderia deixar de ser o seguinte:
“A poesia é bonita menino, mas só se estivesse de acordo com S. Tomás de Aquino” terá dito, ou deixado implícito o reitor do seminário no discurso severo que fez a Silveira Machado (Silveira Machado disse-me isso no café o Galo, onde, como disse antes, avançávamos no projecto de historiar a APIM, e tenho pena de não me recordar das suas exactas palavras).
E assim Silveira Machado, apenas por causa de uns inocentes versos de amor viu-se condenado. Uma escapadela fortuita igual a tantas outras dos seus colegas custou-lhe a ele mais do que a eles, já que eles se escapavam pelas ruas, mas não deixavam as suas escapadelas fotografadas em versos.
O seminário entendia que não tinha vocação. Ponto Final.
Subitamente Silveira Machado vê-se então atirado para a rua. Atirado para a rua? Não! Atirado para a rua seria expressão demasiado forte, isto por que a Diocese cuidava que os seus seminaristas com ou sem vocação singrassem na vida e Silveira Machado singrou.
Havia uma vaga na Repartição da Fazenda e Silveira Machado, que tinha mais habilitações (e com certeza patrocínios) do que outros possíveis concorrentes conseguiu o lugar.
Eram os anos 40 e havia a guerra
Foi em 1941 que Silveira Machado começou a trabalhar, fora de portas do Seminário de S. José. No seminário continuavam alguns dos colegas que se distinguiriam no sacerdócio, e que com ele tinham vindo para Macau. Entre vários contavam-se monsenhor Manuel Teixeira, historiador e autor de uma extensa bibliografia sobre Macau e o menos lembrado padre Áureo de Castro, sobrinho de D. José da Costa Nunes, destacado compositor e fundador da Academia de Música Pio XI, que foi durante décadas o Conservatório de Música de Macau.
Este ano foi um dos mais difíceis de Macau. A guerra lavrava em todo o Mundo e na China em particular, mas Macau, manteve-se neutral ainda que envolto num anel de fogo. Silveira Machado adapta-se à vida de funcionário público. O seminário já não o protege directamente. Mas a burocracia do funcionalismo do Estado não é suficiente e é então que descobre a sua verdadeira vocação: o jornalismo, actividade que nunca largará até ao fim dos seus dias. Decidido entra em 1948 na fundação do jornal que mais anos conta em Macau: o já referido Clarim.
Nos anos de fogo surge O Clarim
Terminada a guerra, Silveira Machado, apaixonado pelo cinema, resolve iniciar-se na sétima arte acompanhando em Macau o que Manuel de Oliveira fazia em Portugal e faz aqui, no Extremo Oriente, “Caminhos Longos”. Era o primeiro filme feito nesta terra.
-O filme era bom, mas o som era mau, diz-me Silveira Machado. Não admira! Os técnicos eram de Hong Kong, bem como os actores e Hong Kong ensaiava apenas os primeiros passos na indústria cinematográfica que viria a universalizar-se algumas décadas mais tarde com Bruce Lee e outros. De qualquer modo o filme teve êxito. Multidões de chineses e macaenses acorreram aos cinemas de Macau e de Hong Kong para o ver.
Mas o filme foi apenas um episódio sem consequências. Macau era uma cidade demasiado pequena para sustentar uma indústria cinematográfica que já então custava muito dinheiro. O próprio Governo de Macau não conseguia alocar verbas do orçamento suficientes sequer para alugar câmaras holofotes e mito menos pagar às estrelas de cinema.
Silveira Machado entendeu isso e passou a dedicar-se ao incentivo do desporto.
Nessa altura o futebol era caso sério. E Silveira Machado apostou no desenvolvimento desta modalidade e com êxito. Os futebolistas macaenses sobressaíam. Airosa Lopes, Rocha e Pacheco.
Rocha, jogador da académica e seleccionado nacional que marcou um canto directo contra a selecção do Brasil e foi assim o brilhante autor da primeira vitória de Portugal sobre o onze campeão do mundo, um feito glorioso.
Pacheco que foi um dos grandes expoentes do futebol português dos anos 50 juntamente com Jesus Correia, Vasques, Wilson, Travassos e Martins, os cinco violinos do Sporting Clube de Portugal.
Pacheco e Rocha singra
ram porque Silveira Machado achou que tinham talento e cuidou deles. Airosa Lopes ficou-se por Macau e pelo hóquei em campo onde foi também estrela.
Nesse tempo estava Silveira Machado na repartição do governo encarregada da divulgação e fomento do turismo e do desporto. Repartição em que cuidou também do hóquei em campo na época em que Airosa Lopes e a equipa de Macau davam cartas, nomeadamente no “interports” com Hong Kong.
Por esses tempos é criada a Escola Normal destinada a formar professor primários. A primeira em toda a história de Macau e Silveira Machado integra o seu corpo docente. Todavia a Escola Normal pouco tempo sobreviveria. Seria encerrada por falta de alunos, para ressuscitar ainda que também brevemente nos anos 80 do século XX. Silveira Machado continuaria todavia ligado à Escola Comercial a formar a juventude macaense em profissões técnicas.
Até que um dia surgiu a idade da reforma que o estado impunha. Silveira Machado atingia os 65 anos. Era tempo de se retirar do funcionalismo público. Creio que nessa altura a reforma se lhe deparou como um choque e por isso decidiu regressar a Portugal. No entanto Silveira Machado, depois de incontáveis anos em Macau que é que tinha a ver com Portugal continental, onde as filhas e netos viviam, ou mesmo com as suas ilhas açorianas? Muito pouco e muito menos Lisboa…
Por isso após três anos de suposto “exílio dourado” regressou a Macau para sobraçar diversas pastas. Foi vogal da APIM, Comité Olímpico, da Associação de Hóquei em Patins e sei lá quantas outras organizações desportivas, sociais e culturais. Tudo sem deixar de colaborar regularmente no seu Clarim de sempre.
Mas a reforma (que é sempre pouco bem-vinda) deu-lhe a possibilidade de dedicar mais tempo à escrita e às tertúlias. E foi assim que no último quartel da sua vida pode finalmente publicar os seus versos e as suas prosas.
“Macau, Sentinela do Passado” (prosa), “Rio das Pérolas” (poemas), “Macau, Mitos e Lendas” (contos), “Duas Instituições Macaenses”, “Macau na Memória do Tempo” e “O Outro lado da Vida” (retrato social de Macau).
Resta dizer o que a agência de notícias Lusa disse sobre este homem que não pode ser esquecido, quando deixou Macau para sempre aos 89 anos de idade:- Fluente em cantonês, Silveira Machado escreveu diversos livros. Muito ligado a Macau, à juventude e à comunidade, Silveira Machado nunca descartava, como explicam os amigos, uma boa discussão. Não visitava Portugal há cerca de 17 anos e costumava dizer que se aterrasse em Lisboa, era capaz de se perder em cinco minutos. A sua actividade cívica e em prol da língua portuguesa em Macau valeu-lhe o reconhecimento da classe política, tendo sido condecorado com a Medalha da Ordem do Mérito Civil da Instrução Pública, Medalha de Mérito Desportivo (classe de prata), Medalha de Mérito Cultural, Comenda da Ordem do Mérito e grau de Grande Oficial da Ordem da Instrução, esta última em Janeiro de 2005 pelo então presidente português Jorge Sampaio. Homem ligado ao desporto, turismo, educação e cultura, a sua morte é considerada uma “enorme perda” pela comunidade em geral.
“Fazia amizades facilmente com todos, era disciplinado e um defensor de valores humanistas em resultado da sua formação católica que o marcou para sempre’, destacou o padre Albino Pais, director do jornal O Clarim. A sua última obra “O Outro lado da Vida|” é um testemunho da sua preocupação com o próximo”, disse ainda o prelado.”Ao longo da sua carreira como jornalista, colaborou na Voz de Macau, na Revista Renascimento, O Clarim, Comunidade, Boletim Informativo de Macau, e foi correspondente do Diário da Manhã e da revista de cinema Plateia. Silveira Machado era um homem livre e eclético como se deduz desta pequena confissão que publicou:
Em grades de ferro
te prenderam por amor
Em grades de ferro
esmagaram a tua dor
As grades não prendem
O voar do pensamento
As grades não seguram
a distância do vento
No encanto dessa idade
há de haver felicidade
p´los cristais da quimera
Há de entrar primavera
Na memória de quem o conheceu, ficou a imagem de um homem culto, generoso, apaixonado pela vida, por Macau e pelas comunidades que aqui habitam.
Na Minha memória fica a recordação e “o voar do pensamento” no café “O Galo”, onde, jantamos, conversamos, divagamos, filosofamos, falamos disto e daquilo, enfim gastávamos o tempo num último café e num último whiskey há muitos anos.
Resta dizer que o café “O Galo” também encerrou há quase tanto tempo quanto Silveira Machado decidiu partir para outro café onde hoje conversa com os seus amigos de ontem e com os novos que vão sempre aparecendo.
Biografia
Professor, co-fundador e jornalista do semanário católico O Clarim, comentador, animador cultural, dirigente desportivo e autor, José Silveira Machado nasceu a 24 de Outubro de 1918 na freguesia e Concelho de Velas, na ilha açoriana de São Jorge e faleceu a 19 de Novembro de 2007, com 89 anos, no Centro Hospitalar Conde S. Januário em Macau, sepultado no cemitério de S. Miguel Arcanjo.
A vida do professor confunde-se com a história de Macau no século XX, onde viveu cerca de 70 anos, foi professor da Escola Comercial, contribuiu para O Clarim e outras publicações, e deixou um património escrito invejável, incluindo um guião para cinema e vários livros de História. Macau foi a cidade do seu coração.
Sócio fundador do “ Círculo Cultural de Macau”, Presidente da Comissão de Árbitros, vice-presidente do Comité Olímpico de Macau.
O Professor José Silveira Machado arribou a Macau em 1933 para estudar para padre no Seminário de S. José na companhia de outras figuras de Macau como monsenhor Manuel Teixeira e o padre Áureo Castro.
Funcionário público desde Janeiro de 1941 na então chamada Repartição da Fazenda do Concelho de Macau, Silveira Machado entra em 1948 para os Serviços de Economia. Em 1974, “o professor”, como era conhecido em Macau, aposentou-se e foi viver para Lisboa em 1973. Regressa a Macau em 1976 para iniciar a carreira de docente na Escola Comercial, Colégio Dom Bosco e no Centro de Formação dos Serviços de Educação.
Quando faleceu não visitava Portugal há cerca de 17 anos e costumava dizer que se aterrasse em Lisboa, era capaz de se perder em cinco minutos.
Casou em 1946 com Margarida, pai de 4 filhas (Estela, Lurdes, Guida e Manuela), avô de 4 netos (Carla, André, João e Pedro).
Homem ligado ao desporto, turismo, educação e cultura, a sua morte foi considerada uma “enorme perda” pela comunidade em geral.
Em Outubro de 2005,” com 87 anos, lança o livro “O outro lado da vida” uma obra que reúne textos por si publicados ao longo dos anos da sua ligação com o O Clarim, afirmando na altura sobre a sua idade que “Cada Primavera que existe no frio dos meus anos, iluminou-me a mente e aqueceu-me o coração para poder continuar a escrever”.
Com a publicação de “O outro lado da Vida”, o autor quis lançar um apelo à preservação e divulgação da cultura portuguesa em Macau.
“Publicar livros em Macau é também uma necessidade e um imperativo para conservar a nossa cultura neste cantinho do mundo que vai perdendo a sua identidade. É um desafio necessário porque senão a nossa comunidade pode vir a evoluir para uma Plataforma em que ninguém lê ou se preocupa com a cultura portuguesa em Macau”.
Homenagear o “lado preto da vida” – o das “crianças que morrem de fome, doentes, pobres, drogados, desempregados ou imigrantes” – foi outro factor que motivou Silveira Machado em “O Outro Lado da Vida”.
Escola do Magistério Primário
Seminário de S. José
Fundado em 23 de Fevereiro de 1728.
A igreja do seminário, uma das mais imponentes de Macau ainda que pouco visível, levou 12 anos a construir sendo inaugurada em 1758. Passou por várias fases de altos e baixos, chegando a ser residência do bispo D. Alexandre da Silva Pedrosa Guimarães (1772-1789), por falta de condições de habitabilidade do Paço Episcopal.
Em 1823 na sequência dos distúrbios entre liberais e miguelistas em Macau, os professores do seminário (quase todos pró – liberais) foram obrigados a fugir de Macau e o seminário esteve virtualmente encerrado S. José renasceu como seminário durante o reinado de D. Pedro V, que determinou a organização dos seminários no ultramar por decreto de 1856. Mais tarde (1871) devido a nova expulsão das ordens religiosas, o seminário foi mesmo secularizado.
Entre 1890 e 1910, a Companhia de Jesus volta a reassumir a direcção do Seminário, apenas para ser de novo expulsa na sequência da proclamação da república em 5 de Outubro de 1910.
Mais tarde os jesuítas regressaram à direcção do seminário, mas retiraram-se voluntariamente em 1930, tendo sido nomeado reitor em 29 de Dezembro desse ano o padre secular Abílio José Fernandes. O seminário de S. José deixou de formar sacerdotes na sequência dos tumultos de 1966. O bispo resignatário de Timor Leste, D. Ximenes Belo, foi um dos últimos seminaristas a formarem-se em S. José.
Escola Comercial “Pedro Nolasco”
Fundada em 1878, ocupava um edifício (actualmente propriedade particular) fronteiro ao Seminário de S. José. Começou por ministrar cursos de quatro anos com as disciplinas de Língua Pátria, Francês, Inglês, Matemática Elementar, Cálculo Comercial, Ciências Naturais, Espécies Comerciais, Geografia Comercial, Vias de Comunicação e Transportes, Comércio, Contabilidade Escrituração Comercial, Caligrafia, Dactilografia e Estenografia. Mais tarde (depois do 28 de Maio de 1926) a escola passaria a adoptar o curriculum oficial das escolas comerciais portuguesas. Em 1952, a escola mudou de instalações ocupando o edifício que é actualmente o da Escola Portuguesa de Macau, tendo sido inaugurado pelo ministro do Ultramar Sarmento Rodrigues em 1952.
Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM)
Fundada a 17 de Setembro de 1871, para colmatar a falta registada pela retirada forçada dos jesuítas do Seminário de S. José.
A constituição da APIM resultou de uma petição de trezentas figuras macaenses ao Governador Sérgio de Sousa (pai do ensaísta e divulgador do cooperativismo em Portugal, António Sérgio), pugnando pela instituição |”de uma instrução pública bem desenvolvida, porque a posição excepcional de Macau coloca os naturais dela na necessidade de só poderem ganhar a vida exercendo misteres que requerem alguma cultura intelectual e o conhecimento de línguas estrangeiras, e por isso se vê com evidência que negar aos macaenses os meios de se instruírem, é o mesmo que tirar-lhes os meios de subsistência. A petição foi atendida. O primeiro presidente da APIM foi Maximiano António dos Remédios, mas o seu grande dinamizador seria Pedro Nolasco da Silva, razão pela qual a Escola Comercial que nasceria desta iniciativa consagraria o seu nome que ainda hoje sobrevive.
(DE: Revista Macau
http://www.revistamacau.com/2009/03/12/1094/ )
2009-03-12RM 14