Uma faixa de planícies, restingas, dunas, lagoas e praias que se estende por 3.800 metros, ocupando uma área de 1,21 km² “entre-mares”, a sudeste da Ilha, compreende a localidade de Campeche, que potencialmente desfruta de uma das mais belas paisagens naturais da Ilha de Santa Catarina.
No aspecto histórico-cultural, Campeche sobressai por seu interessante patrimônio arquitetônico, protegido por Lei Municipal : o conjunto formado pela igrejinha de São Sebastião do Mato de Dentro, o Império do Divino Espírito Santo e a Santa Cruz, que não obstante ter traçado singelo, ganha relevância por ser marco significativo da fundação do povoado. Segundo os registros da tradição oral, a Igreja de São Sebastião foi construída por uma abastada família da região, muito provavelmente a de Miguel Tavares, revelando a origem luso-açoriana do Arraial de lavradores e pescadores que aí floresceu.
A região passa por um processo de reorganização espacial e social, e novos moradores, migrantes nacionais e platinos, enriquecem o fazer e o saber cultural trazendo alterações nas formas tradicionais de viver da comunidade que, por muitas gerações, viveu unicamente da cultura de subsistência do café, do amendoim, do feijão, da mandioca e da pesca. Tais alterações não apagaram valores culturais sobreviventes de uma cultura de raiz açoriana. Valores que estão bem vivos como o artesanato da renda de bilro, o manejo da terra, a lida na pesca, a linguagem, as cantorias, as crenças, os hábitos do cotidiano, as festas populares, a religiosidade e a Festa do Divino Espírito Santo sua tradição mais cara.
Uma comunidade que guarda com orgulho na sua memória a lembrança das histórias do aeródromo construído pela Compagnie Générale Aéropostale utilizado como escala técnica obrigatória na rota Buenos Aires – Rio de Janeiro –Toulouse, do som barulhento dos aviões da Latécoére, em vôos noturnos, aterrizando com a ajuda providencial de lampiões acesos no morro Caboclo, hoje do Lampião, além da passagem do jovem piloto e escritor francês Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944) autor de “Correio do Sul”, “Vôo Noturno”, “Terra dos Homens” “Cidadela” e do carismático “Pequeno Príncipe” que o imortalizou.
De 1929 a 1931 o “Zé Perri,” como era conhecido pelos pescadores locais, em suas inúmeras escaladas no Campeche conviveu com o universo do pescador ilhéu partilhando seus hábitos, a pesca e suas cantorias. Uma lembrança perpetuada na memória histórica do Campeche, na denominação da rua principal do Distrito que leva o nome da obra mais conhecida de Saint-Exupéry “Pequeno Príncipe”. Uma lembrança partilhada e documentada pelo escritor e seus companheiros da Aéropostale como na passagem citada por Saint- Exupéry no livro “Vôo Noturno”(1931) ou na carta escrita por seu amigo Léon-Paul Fargue, em que revela: “Quantas noites eu passei a esperá-lo, nervoso e tenso, não que ele sempre estivesse atrasado, mas porque eu sabia que estava em Florianópolis ou em Ciranaica, e o rádio nada nos dizia sobre o regime de seu motor” (Souvenirs de Saint-Exupéry, 1945).
No ano de 2000, no mês de junho,quando do centenário de nascimento do piloto-escritor, o suboficial da aeronáutica, músico e maestro da Banda NS da Lapa do Ribeirão da Ilha, Getúlio Manoel Inácio, também ele pescador, relatou em livro a amizade entre seu pai, o pescador Rafael Manoel Inácio- “seu Deca”, e o piloto Antoine de Saint-Exupéry. Um minucioso registro de estórias e depoimentos publicados numa singela edição bilíngüe (português-francês) resgata e restabelece a verdade de fatos guardados na memória coletiva da comunidade: a história de “Deca e Zé Perri”.
Naquela época, os aviões tinham pouca autonomia de vôo e as dunas gramadas do Campeche eram pouso obrigatório das linhas que transportavam correio aéreo na rota Paris-Dacar-Rio de Janeiro – Buenos Aires-Toulouse. As paradas serviam para revisar e reabastecer as aeronaves e para que os pilotos descansassem. Assim nasceu a amizade entre o pescador Manoel Inácio, o Deca, e o aviador Saint-Exupéry, chamado de “Zé Perri” por ele e os outros moradores do Campeche, que não conseguiam pronunciar o nome francês. Eram jovens. Deca tinha uns 20 anos e Exupéry 27. O ilhéu ensinou o piloto-escritor a capturar e a preparar peixes que eles faziam ensopados e comiam com o pirão d’ água (preparado à base de caldo de peixe e farinha de mandioca), a conviver com os costumes praieiros daquela gente simples e hospitaleira.
Há sessenta e cinco anos atrás, no dia 31 de julho de 1944, o piloto Antoine de Saint-Exupéry levantou vôo de Borgo,na Córsega,para a sua última missão,durante a II Guerra Mundial. Jamais voltou. Seu avião,um Lightening38 desapareceu sobre o Mediterrâneo.
Enquanto em Paris, a data foi celebrada com um grande colóquio que reuniu estudiosos da obra de Saint-Exupéry,em especial “O Pequeno Príncipe” que com quase duas centenas de traduções tem sido tema de inspiração de peças de teatro, canções, filmes, documentários e exposições; aqui, na Ilha de Santa Catarina, numa comunidade de pescadores, em tempo de Festa do Divino Espírito Santo, o aniversário de morte de Saint-Exupéry é reverenciado com saudade do amigo que um dia aqui passou e partiu levando um pouco do ser ilhéu e deixou muito de si entre as dunas e o mar verde do Campeche.
Florianópolis, 31 de julho de 2009
Aos 65 anos da Morte do Escritor Antoine de Saint-Exupéry
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