O homem que tinha amor ao bom humor
Não foi só à Lúcia e às crianças que Jair Francisco Hamms entregou o seu coração. O escritor e acadêmico amava a vida e o humanismo, acreditava no sonho da fraternidade dentro daquele coração que ontem deu os seus últimos impulsos.
Jair amava a palavra como um cruzado amava o cálice da sabedoria. Fronte alta, olhos azuis, Hamms da Bavária e Francisco dos Açores, Jair era um Mané da Ilha, ali da rua Bocaiúva, onde, garoto, conheceu as palavras num salão de barbeiro. Autoalfabetizou-se lendo os jornais da modesta mesinha do fígaro, “seu” Acácio Silveira, perguntando o significado das palavras a todos os senhores recém-barbeados.
Jair aluno, Jair professor, Jair homem de Cultura na Universidade, que ajudou a implantar com o reitor João David Ferreira Lima. Jair homem de letras, Jair professor, Jair Secretário de Estado – sem ser o clássico político que hoje conhecemos, por cujo conceito não nutria qualquer afeto.
Jair que alinhavava um romance telúrico, espécie de “Amarcord da Ilha”, em que a vida dos ilhéus brotava com a vida das palavras e, como estas, ia evoluindo no “décor” da cidade que muito amava. Era um Florisófilo medular, embora não empedernido, pois rochoso era o seu caráter, não a indulgência de seu espírito voltado para a camaradagem.
Jair Francisco Hamms amava o bom humor e para ele dedicava o eco quase escandaloso de uma gargalhada robusta, marca registrada, única, sonora, sanguínea, uma “arrebentação” em ondas que se desmanchavam num “grugulejar” que o deixava vermelho como um peru – e que ia amansando aos poucos, em “gaitadas”, assemelhadas ao miado de um gato alojado na epiglote.
Jair nasceu animado pelo bordão do visionário de La Mancha, o cavaleiro que jamais esmorecia diante dos moinhos da vida.
– Buen corazón quebranta mala ventura!
Apesar do destemor com que empunhou a vida ao longo de 22 dias numa UTI, a sua recente Mitral não resistiu à inclemência da batalha, que lutou com o ânimo de um “coração valente”.
Deixa os seus livros, o seu caráter, o seu exemplo de integridade. A sua arte de mestre da palavra e da maestria do diálogo, que com ele ganhava uma fluência e uma funcionalidade só encontráveis na vida como ela é. Para ser crível, o diálogo em literatura há que ter naturalidade, palavras chãs e o chão batido da realidade. E o diálogo do Jair tinha a qualidade da verossimilhança, porque o escritor dominava todos os seus segredos.
Dono de um humor instantâneo, que trazia impresso em sua personalidade flamboyant, deu à Literatura contos e crônicas de antologia, escrevendo em revistas e jornais, ou organizando livros que assinalaram uma obra, como “Histórias de Gente e Outras Estórias”, “O Vendedor de Maravilhas”, “O detetive de Florianópolis” , “A Cabra Azul”, “O Samba no Céu” e o belo conto “Alumbramentos”, adaptado para o cinema.
Crônicas como “A Cabra Azul” revelam o humor coloquial e desconcertante, relicários de um tempo em que a cidade, como a Rímini de Federico Fellini, girava em torno da Praça XV e da Felipe Schmidt. Um homem aparece na Felipe vestido todo de azul. Gravata azul. Sapatos e meias azuis. Óculos de lentes azuis. E mesmo assim, todo azulado, não teria chamado a atenção do Senadinho se, além da maleta azul, não estivesse puxando uma cabra azul por uma cordinha. Uma cabra azul, de grandes tetas azuis.
Sábio, o povão logo cogitou:
– É teta estadual!
Ao que o governador logo protestou:
– Se é teta, é federal!
Não era uma coisa nem outra. Era o primeiro Motel de Floripa. A cabra era só a “mascote” do empreendimento, um chamariz para a campanha publicitária.
Com escritos coalhados de irreverência, Jair chegou à imortalidade da Academia Catarinense de Letras, valendo-se do bom humor como regra de ouro – para a vida e para a literatura. Seguia a definição feliz de Henry Bergson, segundo a qual “o humor é a quebra da lógica”. E Jair sabia quebrá-la com a naturalidade de quem partia um graveto.
Sem qualquer lógica é a morte, segundo os versos de Fernando Pessoa. Jair, que amava a palavra e era por ela amado, agora pode, lá do alto, declamar o português:
A morte chega cedo/
Pois breve é toda a vida/
O instante é o arremedo/
De uma coisa perdida./
O amor foi começado/
O ideal não acabou,/
E quem o tenha alcançado/
Não sabe o que alcançou/
E tudo isto a morte risca/
Por não estar certo/
No caderno da sorte/
Que Deus deixou aberto.
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O Autor Sergio da Costa Ramos Nasceu em Florianópolis, Ilha de Santa Catarina (1947), Advogado, jornalista e escritor. Cronista ilhéu, que há muito rompeu as fronteiras regionais.É um intelectual brilhante e um autor elegante na maneira primorosa de tratar a língua portuguesa.
Sergio da Costa Ramos é um nome que honra as letras catarinenses. A sua fértil produção literária compreende as crônicas publicadas, diariamente, em sua coluna no Diário Catarinense e nos seus livros Sorrisos Meio Sacanas (1996), O Plano Surreal (1999), Rapsódias do Mundo Bin – Ou não confia nem no carteiro (2001), Costela de Adão – De um fiel às mulheres e a boa mesa (2007), Duas Violas Arteiras (2009, com Flávio Cardozo) e Piloto de Bernunça (2009) comprobatória da riqueza do seu labor diário da palavra, da escrita escorreita, de uma prosa inigualável que nos prende da primeira a última linha, seja a falar de mundivivências, seja no conduzir o leitor por trilhas da ficção em enredos fascinantes que só ele sabe criar com sua incrível capacidade de fabulação.
Por tudo que foi dito, não tenho dúvida em afirmar de que “o manezinho da crônica” escreve com sotaque açoriano.