O IMAGINÁRIO AÇORIANO ALÉM-EQUADOR
Cerca de dois séculos depois de ter sido “achado” por Pedro Álvares Cabral, no cumprimento da missão “divina” ciosamente guardada na sombra do compasso geográfico do tratado de Tordesilhas, o Brasil ganhou a reputação de ser a “terra do sumiço” da emigração açoriana, sobretudo para as mulheres micaelenses que ficaram “viúvas” a carpir o ‘desaparecimento’ dos respectivos maridos. Há cerca de meio século, fui ocasional ouvidor de alguns desabafos emocionais da nossa tia-avó que fora uma dessas “viúvas” deserdadas e amarguradas pelo eterno silêncio do seu amado marido.
– Aquilo é que foi um sumiço eterno – suspirava a tiaTeresinha, como quem procura pedir socorro à luz para explicar a sombra. Ai mê Dês! Aquele hóme virou o canto da canada, e nunca mais tive nem carta nem mandado…
A emigração açoriana para o sudeste brasileiro sugere algumas particularidades psicossociais que a torna diferente daquela que mais tarde veio a acontecer em relação aos países da América do Norte. O mito de “novo mundo, mundo novo” para além da descoberta do que permanece oculto, era também a promessa da “Idade de Ouro” – a eterna primavera do mundo. A maioria dos ilhéus açorianos, quando foi “empurrada” pelo decreto pombalino para emigrar para o Brasil, não obedeceu ao chamamento por mero aventureirismo romântico. É provável que muitos tenham optado pela crença mitónima de que “não existe pecado no outro lado do equador”.
Entretanto, na ânsia da transição da ‘monarquia agrária’ para o ‘império oceânico’, houve factores notáveis que colocaram a dor da emigração no prateleiro do esquecimento. Em meados do século XVIII, os “pecados” da Coroa foram severamente castigados pelos deuses: num breve intervalo de algumas semanas (Novembro, 1755) Lisboa e Boston foram sacudidos por terramotos geológicos. (Nessa altura, a revolução francesa e a rebelião americana estavam ainda a latejar no útero da história…). Por outro lado, os ilhéus açorianos permaneciam sitiados pela muralha oceânica, olhando o destino em diálogo com o trepidar cíclico dos humores vulcânicos… É razoável lembrar que em meados do século XVIII, os emigrantes insulares que partem para o sudeste brasilerio são herdeiros duma clausura de três séculos de isolamento no meio do Atlântico Norte: partem amuados pela ancestralidade serviçal da “escola da tortura repetida e no uso do penar tornado crente”.
Não nos parece difícil constatar que o ilhéu micaelense, dado o seu temperamento introvertido – como quem diz: “se qués falá comigue, tá calade!” – não podia ser o portador ideal da alegria popular alusiva ao Espirito Santo. Por outro lado, sugerir em terra estranha o culto do Senhor Santo Cristo, seria porventura uma iniciativa arrojada para a sua timidez sócio-religiosa. A multissecular tradição micaelense da procissão do Senhor Santo Cristo dos Milagres é na sua essência uma manifestação típica do corporativismo feudal: antigamente, a população rural “descia” à cidade, ardendo de fé, para formar a moldura humana ao majestoso desfile do clero, da nobreza e dos dignitários políticos convidados.
Não é novidade relembrar que as especificidades psico-climáticas consideradas responsáveis pelo “torpor” açoriano estão a mudar, devido a factores assaz conhecidos, designadamente, a mobilidade sócio-cultural resultante da globalização das comunicações: o cosmopolitismo moderno considera uma ilha como colchão-flutuante para repoisar os ‘ócios” dos habitantes das metrópoles. Por outro lado, no sudeste brasileiro (graças ao louvável esforço das gerações mais recentes de académicos e artistas) está em curso um movimento de pendor humanista interessado na revisitação solidária da “açorianidade comovida” a oeste da Europa. Chega-se, assim, à conclusão óbvia de que a história da emigração açoriana é uma parcela importante da história de Portugal.
Uma breve referência ao facto dos Açores terem sido descobertos pouco mais de meio século antes da primeira chegada das naves portugueses ao Brasil (segundo a mensagem do escrivão da frota, Pero Vaz de Caminha). Na época em que as primeiras gerações de emigrantes açorianos tentavam “refazer” o seu destino ao sul do equador, já havia um grupo de patriotas brasileiros apostados em conversações secretas (algures em Paris) com o então embaixador norte-americano Thomas Jefferson: na altura, ensaiavam os primeiros retoques na causa da independência nacional, que viria a acontecer décadas mais tarde, graças ao auxílio da apatia irónica da Coroa portuguesa…
Resta dizer que, naquele tempo, os emigrantes açorianos em terra brasileira não viam a sua sombra projectada em “chão” estrangeiro. Para quem nasce numa ilha, a imensidade territorial apresenta-se como convite aliciante, quiçá irrecusável. O tempo e a distância são por vezes factores de proximidade. Sim, o Brasil teve a fama de ser ‘terra do sumiço’, talvez por ser imaginado como portal da eternidade com dobradiças humedecidas pelas lágrimas da saudade…
Quando o poeta escreve que “partir é morrer um pouco…” é porque reconhece que emigrar é mais do que adiar a morte existencial; ao fim de contas, “emigrar não é trair nem vergar / é partir para um novo-estar”.
… vamos então sugerir que a emigração é uma teimosia saudável: imaginar a vida para além do equador do paroquialismo “politicamente correcto”… numa viagem solitária em que “na velha mala do sonho, a coragem faz excesso de bagagem”.
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In: Medeiros, João-Luís. Canteiro da Memoria – o rosto enrugado da Espera. Ponta Delgada: Nova Gráfica Ltda,2010
Sobre o autor:
O escritor João-Luís de Medeiros é açoriano, nascido na freguesia de São Roque, Rosto de Cão, Ilha de São Miguel. Com assiduidade marca presença na imprensa da diáspora e dos Açores, assinando desde 1976 a coluna “memorandum” em jornais como o Portuguese Tribune e Portuguese Times (USA) e no Correio do Norte(Açores). Está presente em inúmeras antologias na prosa e na poesia. Apresenta uma produção literária de expressão reconhecida e por diversas vezes referenciada no espaço do Blog Comunidades.