O MENINO
E aqui lembro de um texto do saudoso Martins Garcia, e permito-me parafraseá-lo: todos os anos o Menino nasce, mesmo sabendo da futura cruz e dos pregos, mesmo sabendo que não ficaremos melhores, mas que, como em todos os anos, faremos o propósito inabalável de devolver os livros que nos emprestaram e que já havíamos incorporado à nossa biblioteca. Não se cansa, o Menino, de assistir às festas em que comida e bebida rolam à solta, e perigosas. Não esmorece, o Menino, ao ver a juventude atropelada pela insânia dos que correm em seus potentes automóveis, subindo pelos passeios como se fossem as portas do Paraíso. Não acha lamentáveis, o mesmo Menino, aquelas modas transitórias que nos levam os trocados e dão-nos um gosto de fel na boca.
Tudo isso acontece porque o Menino é muito antigo, de antiquíssima linhagem, e a experiência dessa antigüidade é que O designa vertiginosamente sábio e poderoso, capaz de criar mundos melhores ou, com um gesto de sua pequena mão, dar um fim à Humanidade. “Sim, e por que não o faz?”, podem perguntar, desafiantes. A resposta é simples: ainda não é tempo. Mas há outra, melhor: não o faz porque a vida, mesmo como é, é bela, e essa beleza, tantas vezes invisível, chega a nós como um pássaro que leva o horizonte em suas asas. O Menino sorri de nossos ridículos, não o riso do escárnio, mas de compreensão; ele sabe que no fundo queremos ser bons, esforçamo-nos por isso; jamais desejaríamos aplicar a mentira de ontem, nem matar aquela formiga sob nosso sapato, nem recusar o afago que tanto nos imploravam. No fundo, desejamos levar à risca a Palavra, de que fomos feitos à imagem e semelhança do Pai, e descobrimos diariamente a sombra dessa vasta dignidade em todos nossos gestos, mesmo naqueles ensaiados apenas para agradar.
Não sabemos a duração da vida, e por isso somos cada vez mais ágeis. Os antigos eram diferentes. Nem sempre melhores, mas diferentes. Uma vez foram dar a Gandhi a notícia de que um novo avião faria a linha Londres-Nova Dehli em três horas a menos. Resposta: “Sim, e o que as pessoas farão dessas três horas”? Os antigos, tomando de empréstimo Jorge Luis Borges, viviam a eternidade do instante. A pressa atual dá-nos a sensação de que não estamos vivendo, banaliza nossos dias e acaba por privar-nos da contemplação das auroras.
Se é tempo de propósitos, que sejam: farei de tudo para ser mais tolerante, mais ouvinte, menos ávido da fama, do dinheiro ou daquele carro azul-metálico. E sobretudo, terei menos pressa.
O Menino sabe que nada disso acontecerá, mas com um sorriso há de entender que nossos propósitos são o que temos de melhor. E, porque somos instáveis e desconcertantes, é até possível que cumpramos algo disso.
Feliz Natal.
Porto Alegre,Dezembro de 2009
Luiz Antonio de Assis Brasil
É Professor-Doutor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Orienta pesquisas sobre a narrativa açoriana Pós-25 de Abril.
(Website: www.laab.com.br).
Escritor brasileiro (ficcionista e ensaísta), reconhecido e premiado com cerca de 20 livros publicados. Iniciou sua carreira com o romance “Um Quarto de Légua em Quadro” (já na sua 6ª edição) em que aborda a histórica saga açoriana por terras do Brasil SUL, no século XVIII . Prémio Machado de Assis 2001, Biblioteca Nacional, concedido a O pintor de retratos, o Prémio Portugal Telecom 2004, atribuído a A margem imóvel do rio, e o Prémio Copa de Literatura Brasileira 2007, pelo seu livro Música Perdida (os belíssimos romances da trilogia Visitantes do Sul.Seu mais recente livro, Ensaios íntimos e imperfeitos.
Foto Menino:acervo Blog Comunidades.