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Em O meu mundo a personagem fantástica capaz de incentivar o diálogo entre o mundo dos vivos e o dos mortos chama-se João-Lázaro, um homem híbrido que congrega em si o profeta João e o mendigo Lázaro. Ele é um símbolo do humano mais respeitado por Cristo na sua viagem pela terra, na sua dedicação pelos que não têm genealogia definida. “Não conheceram João-Lázaro?” pergunta o narrador, passando depois à descrição de um mendigo de côdeas e torresmos, não compreendido na sua complexidade por uma população que apenas descobre nele o filho do incesto. Porque não estão preparados para ouvi-lo, são os animais os primeiros a reconhecê-lo, seguindo-se a negociação da aceitação de João-Lázaro engendrada pelo curador Cadete junto da comunidade em relação a quem tinha falhado o poder do padre Governo! Assim, o homem-pássaro de olhar luciferino e voz branca instala-se “mais próximo dos animais e das crianças do que das pessoas adultas” (169). Nesse tempo os seus atos são traduzidos num português medieval:
Afinal, o milagre das curas prosseguia sempre e João-Lázaro continuava a tocar os corpos, e os corpos salvavam-se, e tanta alegria haviam entonces homêns e molheres e seus filhos, e ainda seus amigos e seus animais, que non tiinham outra tençom que non foosse de se abraçarem e beijarem chorando, e todos bendizerem o seu Senhor Deus-Padre, per ữa tam igual mercê nunca jamais vista nem admirada em algữa parte deste escuro mundo (173).
Mas é também a conceção triste de uma vida na terra dependente da vontade de um Deus todo poderoso satisfeito com o ato de ação de graças em tom hiperbólico que se pode inferir a partir desta escrita de traços medievais. A organização da comunidade baseia-se na impossibilidade da realização individual, no sentido em que se enfatiza um coletivo estruturado pelo polissíndeto. Aliás, a relação umbilical entre o ser humano e a terra apresenta-se como o modelo de uma sociedade de contínuo retorno à terra. João-Lázaro ressuscita e o avião despenha-se no Pico da Vara quando um dos habitantes da freguesia está a restituir os alimentos ao seio materno da terra: “JOÃO MARIA ESTAVA DE CÓCORAS, FAZENDO CACA NO QUINTAL, QUANDO TUDO ACONTECEU. PERCEBEU, PRIMEIRO, QUE UM RUÍDO SEMELHANTE AO DESMORONAR DAS FRAGAS NUMA PEDREIRA crescia de longe ao seu encontro e vinha sobrepor-se à sonatina das ondas e ao tráfego agoirento das cagarras” (187). O desconforto de João Maria reflete-se no mal estar da natureza apercebida pela focalização interna deste homem. Através do seu olhar podemos ler uma natureza grotesca, em que o corpo de uma montanha se resume a um ventre enorme sobre a forma de uma divindade sentada “na sua desgraça;” ou seja, sobre os elementos defecados. Não é ainda possível a esta sociedade conceber-se como parte de um ecossistema feliz, porquanto o que ressalta é a imagem de um mundo desgastado, o das beberragens de Cadete. Na freguesia o curador representa a lucidez que falta aos poderes católico e político. É ele quem primeiro se torna consciente da sua própria desatualização face ao efeito João-Lázaro, embora não consiga conceber uma evolução pessoal capaz de integrar a mensagem do mendigo profeta. Cadete acredita que a sua solução é a morte e visualiza o progresso anunciado como um exercício antropofágico da humanidade, cujos ciclos de existência já estão esgotados: “[A humanidade] Ia começar a devorar-se. Ia iniciar o processo da sua longa, lenta, inevitável extinção. Sabia que era esse, e não outro, o destino do mundo, do homem – e de ambos” (186).
Apesar do pessimismo da sua solução, Cadete apercebe-se de que chegou o fim do daquele mundo tal como ele fora até então.
No momento em que João-Lázaro ressuscita, a natureza da ilha apresenta sinais de insustentabilidade. O seu regresso acontece em 2 de Novembro, Dia dos Fiéis Defuntos. Nesse dia a natureza apresenta-se toda embebida de um fluido de morte. O discurso medievalizante do padre Governo esgota o ambiente, que parece reagir com agressividade: “o vento de Novembro, soprando em rajadas esparsas, largava assobios no corpo dos ciprestes e das canas-da-índia. Tratava-se de um vento amargo, sibilino como o som dos prantos das mulheres” (175). A memória do pecado é o argumento de subjugação da voz religiosa a recordar aos homens e às mulheres o seu destino – “memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris” (176). Assim, se mantivera a hierarquia social num mundo interior isolado dos outros reinos. No entanto, o padre Governo também está só, investido de um discurso de natureza escatológica dirigido à montanha mítica, por oposição ao mar dos Açores e de Cadete que não acolhe esta via espiritual: “o mar dos Açores, rugia no desespero dos seus cavalos do Apocalipse, e havia deuses à superfície, armados de tridente, cujos cavalos, brancos, alados e volumosos, removiam o próprio seio da água. Os deuses iam de pé nos seus velozes cavalos de guerra e o mar ficava tão branco, nesta passagem, como a ira dos ventos cruzados” (178). Se a terra foi dominada pelo medo, o mar está possuído por uma pulsão de vida múltipla. As entidades mitológicas que o habitam não se afirmam no ato piedoso, mas antes no tráfego libertador das energias primitivas. A ira do vento a remexer as águas marítimas permanece como um reduto indomado e desafiador de novas descobertas.
João-Lázaro ressuscita na figura digna de um velho patriarca da Bíblia, assumindo uma atitude de brandura no tratamento das pessoas. Ele é, de novo, primeiramente reconhecido pelos que estão mais próximos do ambiente natural; os cães da ilha “vinham lamber-lhe as mãos e uivavam em delírios” e os bébés estendiam “na sua direção os braços e um sorriso ainda sem memória” (180). A interação com os adultos acontece de forma progressiva, porque as suas propostas são demasiado revolucionárias para aquela comunidade de medievais. Os adultos não o reconhecem de imediato, em virtude de se terem esquecido do seu nome, de modo que as propostas do profeta soam a loucura: “‘Sou João-Lázaro, o que um dia morreu para regressar do futuro’ – respondeu o outro. E explicou assaz docemente, que estava ali enviado pela sabedoria dos povos e nações, a fim de anunciar as alegrias efémeras da vida e suavizar o sofrimento dos homens da Ilha” (178). Ele é o profeta dos valores materiais, da mensagem de conforto a que têm direito os ilhéus privados do progresso que entretanto ocorrera no exterior da ilha. Por isso, João-Lázaro fala-lhes de meios de transporte como comboios, navios e aviões; sugere-lhes o alívio das tarefas laborais pela utilização da máquina, ou ainda faz a apologia do potencial que representa a energia elétrica. O seu discurso direto começa por assustar as pessoas: “As máquinas falam, as máquinas lidam com os números, descobrem e tratam as doenças. Os próprios comboios brancos voam comandados por essa inteligência consumada, como voam os aviões e os pássaros” (182). Mas o sentido pragmático dos ilhéus presta-se a uma integração rápida dos novos conhecimentos logo que a população se apercebe da força reivindicativa que a civilização e o conhecimento de outras culturas e línguas estrangeiras representam.
É assim que a queda do pássaro-avião no Pico da Vara assume o valor simbólico de clímax num processo de choque epistemológico, por um lado, e de questionamento ontológico por outro. O confronto com a morte dos passageiros na montanha materializa imagens culturais de um purgatório até à exaustão. E como tal, “A terra chupara tão sofregamente as imagens dessa destruição que a própria morte já não existia em espírito, nem era sequer imaginável por nenhum deles” (196). Apenas João Maria e João-Lázaro possuem uma competência reflexiva capaz de traduzir a humanidade em inglês dos passageiros cadáveres: “mammy” na boca de uma criança, “love” na vagina de uma jovem mulher, “oh, my God, my sweet God” num rosto de padre, ou o nome “Cindy” da menina cadáver sentada numa pedra e que fora a última a morrer (199-200).
A interação dos demais ilhéus que acompanham a inspeção do avião cifra-se por um interesse de ordem material. A apropriação da carga é um diálogo cultural guiado pela euforia e selvajaria daqueles observadores:
O curador Cadete actuava vagarosamente, e o seu aspecto de gordo tornara-lhe pesadíssimos os gestos, ao debater-se com os anéis de rubis e safiras que os dedos de um cadáver, teimosamente rígidos, subtraíam à sua cobiça. A solução não foi outra: abriu o navalhão de capador e decepou uma falange e depois outra e outra; e ele perdeu, quem sabe se para sempre, a vontade de morrer” (199).
Neste encontro com o objeto de luxo, o habitante primitivo da ilha encontra elementos do conforto anunciado por João Lázaro. A vontade de morrer passa a ser substituída por uma necessidade de questionamento do que está para além da ilha; o outro mundo trazido àquela comunidade por um episódio de falência da modernidade daquela máquina voadora. No mundo pós-moderno que se anuncia cabem processos de reconstituição fantástica, de anulação de fronteiras entre “mundos.” No final do capítulo XIII, os mortos despedem-se alegremente dos vivos depois de os terem ameaçado “com gestos obscenos e palavras inaudíveis” (200)!
O meu mundo não é deste reino encena um possível relato histórico de uma ruralidade açoriana, caracterizada por uma demorada relação intrínseca entre o habitante e o ambiente natural. É uma escrita literária que assume também o registo de como essas vivências dos ilhéus se desenvolveram. Pelo que, a palavra artística d’O meu mundo concretiza uma memória do chão da ilha, em aproximação ao que R. G. Collingwood refere como condição para que um facto natural seja considerado como tal – “the observer must be a trustworthy observer and the conditions must be of such a kind as to permit trustworthy observations to be made” (The Idea of Nature 176).
O meu mundo de João de Melo presentifica a memória dos ilhéus daquele lado da Ilha de S. Miguel. Neste texto ecoam narrativas orais da completa loucura e frieza que realmente aconteceram perante a morte estrangeira dos passageiros do Locheed Consttelation da Air France que se despenhou no Pico da Vara no Outono de 1949. Na altura, foi toda uma população pobre que se apropriou da carga do avião, tendo levado a cabo um posterior processo de reciclagem dos materiais reintegrados na vida doméstica e nas casas dos habitantes da ilha. O tempo pôde começar a ser medido pelas máquinas-relógio subtraídas ao avião, os pés pisaram o chão calçados com sapatos das vítimas do voo, mesmo que tenha acontecido ter de desalojar um pé de cadáver estrangeiro do interior do sapato; e foi até possível celebrar a morte pela partilha de alimentos cozinhados em recipientes feitos a partir das placas metálicas do avião.
Irene de Amaral – Estados Unidos da América
É natural de New Bedford, Massachusetts, EUA. Viveu em S. Miguel, Açores, entre 1973-1999. Reside nos Estados Unidos desde 1999. Possui uma licenciatura em Ensino de Português e Francês pela Universidade dos Açores e um mestrado em Supervisão do Ensino de Português pela Universidade de Aveiro. Atualmente, é doutoranda em Estudos Luso-Afro-Brasileiros na UMASS Dartmouth, EUA. Os seus interesses de investigação centram-se na literatura e cultura açorianas.