Curiosamente (não acham?)… hoje não me apresento, aqui, como comentador voluntário do quotidiano sócio-político da grei açor-lusitana. Sim, já passaram mais de 30 anos: os leitores mais lúcidos descobriram que não sou “assalariado” político, porque tive a sina de escapar ao imperativo da necessidade de ser colunista “pago à linha” (sem desprimor pela dignidade profissional dos colegas que pensam e actuam diferentemente).
Gostaria de sugerir aos prezados leitores desta coluna a fineza de me acompanharem numa jornada de gratidão, pelo gesto publicamente assumido pelo professor Nuno A. Vieira – colunista de rara probidade opinativa e pedagógica, e com presença credenciada em vários orgãos da diáspora lusófona (vidé crónica “Notas de Rodapé” – edição do PT 11/04/09, e também no Diário Insular, de Angra do Heroísmo, Terceira).
Como assentei praça na vida em meados do século XX, creio não me ter atrasado no treino exigido aos que continuam confiantes na benignidade humana. Tenho procurado não faltar às aulas da vida, onde a alegria suada da aprendizagem faz parte da aventura resultante da convivialidade entre mestres e discípulos… sem vénias ao estandarte dos promotores do martírio alheio.
Ora aconteceu que o conceituado cronista Nuno A. Vieira veio há dias aspergir, por sobre a opinião pública das comunidades açorianas, o orvalho perfumado da solidariedade artística. Face ao cenário opaco da finitude humana, subscrevo o decreto de que é perda de tempo repetir a veleidade palavrosa de que a Vida é injusta… O observador atento reconhece que, embora muito longe de imitar o altruísmo das formigas, o ser humano é ainda capaz de galgar os píncaros do heroísmo para “esticar” o bem-estar da comunidade onde se insere.
Hoje, gostaria de merecer a vossa companhia nesta aliciante subida ao Mirante da Fraternidade. Estou a pedir às palavras que sirvam de fio-condutor ao sentimento do poeta: socorro-me da expressão paulina – “love seeks not its own interests”. Atrevo-me a opinar que o autor de “Notas de Rodapé” pertence à gesta dos idealistas que proclamam “nem só da razão vive o homem“. Creio que não fui o único a reparar na sua humildade corajosa ao tentar associar o meu nome aos vocábulos “liberdade e verdade“. Já sinto os ombros a latejar com o peso da responsabilidade ética e artística, resultante da generosa expectativa que o nosso “cronista-semeador” Nuno A.Vieira espalhou nos canteiros da opinião pública da nossa pacata comunidade.
Entretanto, venho “pela primeira vez” fazer um breve parêntesis para recordar e agradecer,
publicamente, os companheiros que já vieram a terreiro expressar o que sentiram àcerca do conteúdo poético de (Re)verso da Palavra: escritores Daniel de Sá, Cristóvão de Aguiar, Eduardo Bettencourt Pinto; artistas e académicos Francisco Fagundes, Irene Blayer, Célia Cordeiro, J.M. Lopes de Araújo, Dionísio DaCosta, os tradutores Jonh M. Kinsella (Inglês) e Leons Briedis (Latvia), sem todavia mencionar os que optaram pela sua inviolável privacidade…
Adiante. Considero que o mais humilhante destino para um livro seria transformá-lo em “altar-ego” para sacramentar o perfil do respectivo autor: prefiro dizer que livros são pássaros em liberdade que transportam nas suas asas o mistério duma mensagem “que é de todos e não é de ninguém“.
Repito: o cronista Nuno A. Vieira veio agasalhar a nudez das (minhas) palavras com o tecido emocional da verdade, prima-irmã da liberdade; depois, vem convidar o leitor a poisar o olhar na proposta seareira dos meus poemas; finalmente, presenteia-me com o cuidado de abrasar a lareira da solidariedade cultural, com o carvão fresco da afectividade humana. Obrigado, amigo!
Gostaria de relembrar que os poemas coleccionados nas páginas de (Re)verso da Palavra são pertença emocional dos seus leitores. A poesia não merece a tristura de ser encarcerada nas estantes repletas do vazio decorativo, não raro envernizadas pela indiferença impenetrável das mordomias culturais.
Meu caro: reconheço o meu parentesco com poetas-navegadores das caravelas do imaginário, perdidos e achados nas encruzilhadas da nossa ancestralidade comum:
somos navega(dores)…
… a dor olha a vida pela vidraça
que disfarça o perfil oculto das origens.
Não podemos penetrar o arco-íris
da alegria ou do sofrimento
sem conhecer o alfabeto do silêncio
impresso nas páginas que o vento
esconde no cofre-forte da memória…
Poetas são alavancas de recurso
na tormenta de quem vive a prazo
com licença da morte a respirar angústias
e promessas de pátrias celestiais…
poetas-emigrantes, visionários do ideal:
navega(dores) nos mares do espanto
no duelo com o vendaval do bem e do mal…
Imaginar!… Imaginar é navegar sem rumo
na contra-corrente da existência
com destinos à proa, na ânsia de chegar…
bem-vinda seja a gota do presente
caída no charco do tempo que nos resta:
(cada episódio passa por nós a correr
aragem do Nada que a eternidade empresta.
(inédito)
JLM
Rancho-Mirage California, 23 de Novembro, 2009
João-Luís de Medeiros
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João-Luís de Medeiros é natural da ilha de São Miguel, Açores, e vive nos Estados Unidos desde finais de 1980. Antes de emigrar, trabalhou no sector privado empresarial, e após a instauração da Democracia em Portugal, foi eleito parlamentar à Primeira Legislatura da A.L.R. (Horta, Faial, 1976); mais tarde, serviu como representante açoriano na Assembleia da República (Lisboa, 1978). As suas publicações em poesia e prosa estão dispersas algures em jornais e revistas da diaspora lusófona. Desde 1976, é colunista-convidado da imprensa comunitária (coluna Memorandum). É co-autor do livro “Em Louvor do Divino” (1993); recentemente, publicou o seu primeiro livro de poemas intitulado “(Re)verso da Palavra” (2007). João-Luís de Medeiros é licenciado ‘cum laude’ em Humanidades e Ciências Sociais (University of Massachusetts, Dartmouth); mais tarde, obteve o Mestrado em Ciências de Recursos Humanos (Chapman University, Orange, California).