O Natal e a Idade Pós-Humana
Vamberto Freitas
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De tudo o que se possa dizer do nosso tempo, dos nossos dias que parecem sem verdades nem certezas, os dias apocalípticos do falhanço societal geral e da infelicidade de cada um preso em labirintos reais ou imaginados, creio que será ainda possível assumir que nenhum povo pode viver sem os seus ritos e rituais, sem a reafirmação da sua humanidade e razão de ser. Deus, afinal, está aonde? Porque deixa acontecer o que nos acontece individual ou colectivamente? Essa tem sido a preocupação da Teologia mais pura porque essa é a ânsia suprema da humanidade. Ninguém terá a resposta sobre nada, mas isso não nos iliba nem liberta de nos agarrarmos ao que resta, e quem sabe se isso é fatalmente Deus? Pelo menos durante uns dias tomarmos consciência da Comunidade, dar e receber com a humildade de homens e mulheres iguais ante a grande Força que nos olha e, esperemos, nos orienta.
Não tenho nada a dizer sobre o outro Natal, cada vez mais pertencente aos malditos “mercados” (bancos internacionais especuladores e sugadores, para aqueles que já não têm paciência para os eufemismos dos bandalhos), o Natal agora pensado e executado pelos “usurários” que dão por nomes muito mais finos e legitimadores, o Natal dos gananciosos que pregam sobre o mundo das trocas, vendas e compras, e desavergonhadamente sobre nossa “obrigação” de ceder às supostas tradições por uns dias enfeitadas com luzes públicas e privadas, tão brilhantes que escondem a hipocrisia e a sujeira de alma e na casa própria. Nada tenho a dizer sobre o que deveríamos ser ou não ser nestes dias. Cada um, suponho, tem o Deus que merece e vai à Missa que quer. Só que não venham os vendedores de templos, os da nossa imaginação e os que têm geografias precisas, pregar impunemente o contrário daquilo que na realidade são, ou tal como os deveríamos ver e entender: falsos profetas da bondade e da generosidade, seres vazios de sabedoria e honra, de sorriso que raramente acontece sem um cálculo perturbador. Serão só alguns, ou estaremos todos, todos, implicados no seu crime moral? O símbolo que para mim se tornou mais sagrado é o Menino da noite celeste e de olhos inocentes, depois feito Homem de cara rasgada pelo sofrimento — mas de chicote na mão. São estes os dias simbólicos em que Dele mais precisamos, a Sua ausência traz só o caos e a dor indefinida mas real, a deriva para o Nada e para Lugar Nenhum. Poderia alguém nomear um único Governo à face da terra que merece o nosso respeito e complacência, pela verdade das suas palavras e pela justeza das suas acções? Não são eles os colaboradores — colaboradores e defensores — activos e conscientes dos “mercados” selvaticamente à solta ajoelhando nações inteiras ante os seus roubos sem punição? Será que nos querem empurrar a todos outra vez até à fria Estação da Finlândia? Ou o seu teclado não os leva a pesquisas de História e Fúria?
Se o Natal é a (re)nascença, então vivamo-lo de coração aberto e consciência limpa — o ciclo só se completa e perpetua-se com a Ceia Partilhada. É para mim a outra metáfora mais linda da tradição ocidental, que muitos outros povos celebram pela universalidade da sua representação, pelo gesto da mão estendida e solidária, pelo retorno a nós próprios. A negação da ideologia, das seculares crenças humanistas, tem provado ser a pior e a mais injusta ideologia dos nossos tempos, a suprema mentira que serve muito bem os propósitos dos que nos querem tributáveis, passivos e medrosos.
O Natal, apesar de tudo, poderá ser ainda o único momento de dignidade que nos resta, ou o símbolo de tudo o que deveríamos recuperar. Os sinais do tempo anunciam tempestades mortíferas, mas as causas não são só o suposto aquecimento ou arrefecimento do ar. Somos nós. Todos. Por comissão e omissão.
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(*) O autor Vamberto Freitas é professor da Universidade dos Açores e escritor,tendo se dedicado ao ensaio,crônica e a crítica literária com inúmeros livros publicados de vozes das diásporas culturais,nas duas margens Atlânticas.
Sua mais recente obra “Imaginários Luso-americanos e Açorianos -do outro lado do espelho” têm merecido aplauso do público leitor e da crítica especializada .