O pastor das casas mortas,
de Daniel de Sá
Cavaleiro andante por amor à literatura, Daniel de Sá continua a surpreender e a surpreender-nos (1). Desta vez o seu cometimento literário tem por título O pastor das casas mortas (Ver Açor, Lda., Ponta Delgada 2007), com a indicação de novela inscrita na capa.
A categorização literária é, nesta recensão, assunto de somenos importância. Mesmo assim, ao ler este livro, pareceu-me ter nele encontrado alguns resquícios da novela sentimental do Renascimento, bem como ecos das intrigas do amor bucólico e/ou sensual, do romance popular, dos preceitos cavaleirescos e cortesãos, da tradição pastoril (com Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro, a rondar por perto) e, tal como se verifica em todas as obras de Daniel de Sá, também esta é atravessada por um sopro bíblico, judicativo e conceituoso.
O pastor das casas mortas é, na minha opinião, um misto de novela de acção e de sentimentos. Isto é, novela de análise psicológica em que o autor examina, com penetrante argúcia e delicada simpatia, o processo doloroso da alma humana dominada pelo sentimento de uma perda, de um abandono e de um amor nunca satisfeito, fontes de toda a infelicidade.
Ao sucessivo encadeamento estrutural da novela corresponde uma sintaxe que, no seu melhor, torna virtualmente impossível isolar qualquer capítulo que, por semelhança ou contraste, não esteja relacionada com todos os outros. Tudo aqui é minuciosamente (d)escrito, com grande frescura narrativa e apuro literário, havendo a considerar a preocupação atenta no pormenor exacto.
A personagem central do livro é Manuel Cordovão, que vive no microcosmo de uma aldeia beirã, e é pastor de ovelhas e cabras e guardador de casas e memórias. Mas não é um pastor qualquer: dotado de inteligência, gosta de dar nomes às pedras, tem gosto pela leitura, ímpetos de escrita, capacidades oratórias e arroubos líricos… E há nele algo de quixotesco, a começar pelas suas desventuras amorosas em relação a Maria da Graça, a grande paixão da sua vida, polarização do desejo… Mas, hélas, Graça há-de casar com Joaquim Torre Velha, bem mais velho do que ela… Aliás, é o sentimento amoroso que guia os passos de Manuel Cordovão, animando-o nas suas peregrinações interiores.
É recorrendo a este disfarce pastoril que Daniel de Sá parte para a escrita desta obra com o objectivo de nos contar – e bem – uma história de vidas vividas e de vidas sonhadas. Uma história que capta muito bem o “espírito do lugar” da Aldeia Nova da Serra, que não está na narrativa a servir de décor, mas a funcionar como um símbolo e uma metáfora de um país desertificado, degenerado e envelhecido… Uma história em que as personagens querem precisamente escrever a sua própria história, em tempo de atmosfera opressiva da Censura, de Guerra Colonial e de outros mecanismos repressivos do Estado Novo.
Confinadas à serra, vivendo a solidão e o isolamento de uma sociedade fechada sobre si mesma, a contas com inquietações sociais e políticas e angústias existenciais e metafísicas, as personagens estabelecem entre si relações de afectividade e solidariedade, de surpresa e contemplação e, em estado latente, há nelas um desejo de evasão, viagem, sonho e felicidade. Porque sabem que a infância (enquanto paraíso irremediavelmente perdido) lhes comandará a vida inteira. E depois vivem um tempo que é de ignorância e intolerância, de penúria e penumbra. O quotidiano é penoso e banal. O povo da serra é resignado e temente a Deus e a todos os poderes instituídos. Pairam os “fantasmas da memória” (pág. 69). O presidente da Junta é “rigoroso no exigir e somítico no pagar” (pág.75). Há a coscuvilhice da vida alheia… A electricidade é coisa que ainda não existe e a morte de uma criança acende mais uma estrela no céu… À serra chegam ecos da Guerra Civil de Espanha. Almoça-se pão com presunto e existem aldeões de rude sabedoria e contadores de histórias, como o velho Vasco. Vive-se com os olhos postos na emigração e no fascínio da lonjura. A monotonia aldeã é apenas quebrada pela festa religiosa e profana. Os homens jogam à sueca nos longos serões de não haver televisão. E o entretenimento dos rapazes consiste em mirar as pernas das lavadeiras quando estas, em plena acção laboral, inclinam eroticamente os corpos para as águas do rio… As casas vão ficando vazias, os relógios parados e as aranhas tecem malhas de um destino triste.
A humaníssima voz de Daniel de Sá chega-nos, neste livro, através do fino recorte psicológico das suas personagens: Manuel Cordovão, Maria da Graça, Joaquim Torre Velha, Olívia, Francisco Poços, João Bernardo, mestre Gil, o velho Vasco, Manuel da Mota, Laura, Teresa, Joana, Mariana, Madalena, Maria Angelina são gente de corpo inteiro, muito digna e muito humana.
À medida que o tempo flui, todos partem deixando as casas abandonadas e a aldeia despovoada:
“Ainda havia fogo na lareira. A Graça dera-lhe a chave, para que tomasse conta de mais aquela casa morta. Agora, Manuel era senhor da aldeia inteira. Os novos andaram para longe, os que haviam morrido na serra tinham-se mudado para o vale. Mas a aldeia, apesar de não poder ser enterrada, não ressuscitaria nunca. Ainda que a comprassem e arranjassem para turistas, continuaria morta, definitivamente morta. Porque uma aldeia não são só casas, mas sobretudo as pessoas. E essas não queriam ou não podiam voltar”. (pág. 95)
Estão, nesta obra, os problemas fundamentais da condição humana: a vida, o amor, a morte, a reconciliação da vida e da morte através do amor. A esta atitude psicológica soube Daniel de Sá dar, através de um poder de recriação e imaginação criadora, uma altíssima expressão narrativa e poética.
Estamos, por conseguinte, perante um livro singular, envolvente e tocante. De plena espessura evocativa e atenta observação do humano.
Victor Rui Dores
(1) Esta recensão foi escrita em 2007