O Pastor Manco
– Meu sogro, quando chegar, que telefone, se faz favor.
Os genros tinham mais cuidado com ele do que as filhas, que eram duas, e os filhos, que eram quatro. Passara uns meses no Canadá, depois de a mulher ter morrido. Convenceram-no a emigrar para não ficar sozinho, sem ninguém que cuidasse dele com amor. Mas aquilo não era vida para si. E o amor não era tanto como apregoado. Estava sempre fechado em casa. Não podia ir a lado nenhum que não fosse de carro. Aquele genro, o António José, era o que o tratava melhor. Levava-o à missa portuguesa, chegou a ir a Montreal para que ele visitasse os filhos que lá viviam, animava-o quanto podia. Incomodava-o sobretudo passar um mês numa casa, o mês seguinte em outra, até se acabar a ronda pelos filhos, dois, e pelas filhas, duas, que moravam naquela cidade. Mas tão longe uns dos outros quase como ir na sua ilha de ponta a ponta. Sentia-se uma espécie de coroa do Espírito Santo nas andanças das Domingas.
Com a aproximação do Natal começou a dizer que queria voltar para casa. Não dizia “para Portugal” ou “para os Açores”, era “para casa”, simplesmente. Casa, dita por ele, pensada por ele, só havia uma, a sua. Aquela onde fora feliz com a mulher e com os filhos. Que julgava ter educado melhor do que o que via por causa das mudanças de costumes e de sentimentos que a fartura provocara neles. Tinha de passar o Natal era em casa, portanto. E armar o presépio ao Menino, como sempre. Não porque tivesse alegria agora para o fazer, mas porque o havia prometido à sua “santa”, que Deus lá tinha. Até ao fim da vida. Nem poderia imaginar-se sem a Missa do Galo na sua igreja.
“Meu pai que fique”, diziam-lhe as filhas e os filhos. “Meu sogro há-de passar o Natal é com a gente, nem pensar ir-se embora”, implorava aquele genro, o António José. “O Menino Jesus nasce, e eu morro”, respondia o velho.
Veio. Na antevéspera do Natal. Mas o avião teve de se desviar para a Terceira, por causa do mau tempo. Não se previa que pudesse chegar a casa durante o dia seguinte. Telefonou, como o genro pedira. Atendeu a filha. Contou o que acontecera. “Bem feito. Meu pai é teimoso. E agora nem Missa de Galo nem nada.”
Passou a noite embrulhado nuns cobertores que uma alma caridosa foi buscar ao armazém da SATA. E eram já dez da noite quando, no outro dia, pôde começar a chegar a casa. Sabia que já não ia a horas da Missa do Galo. O padre da sua freguesia era responsável por três igrejas, e celebrava-a na primeira às dez e meia, para poder estar à meia-noite na segunda, indo depois à uma e meia para a terceira igreja. Era no que dava a falta de padres, era no que dava a falta de fé como antigamente, como no Canadá. Sempre era melhor do que nada, mas Missa do Galo, para ele, era à meia-noite em ponto. E só no ano seguinte seria a vez de a sua freguesia a ter à hora certa. Fosse feita a vontade de Deus.
Foi dos primeiros a entrar no avião, como se assim pudesse chegar mais cedo. Sem que tivesse dado por ele antes, viu com surpresa o Padre Augusto, que era professor no seminário, saudá-lo calorosamente e sentar-se a seu lado. Contou-lhe as peripécias da sua desilusão.
O Padre Augusto ofereceu-lhe boleia para o último caminho até casa. Quando chegaram à freguesia, tinha acabado uma das cerimónias de que mais gostava, beijar o Menino. Foi então que o Padre Augusto lhe disse que, se ele quisesse, poderia ainda assistir a uma Missa do Galo. Ia celebrá-la, nem que fosse para ele sozinho. Apareceu mais uma dúzia de pessoas. A homilia foi breve. “Ninguém pensaria que um menino que nasceu numa manjedoira, e que cresceu numa terra tão pobre como Nazaré, pudesse ser alguém importante. Quando já era homem, na primeira vez que houve quem se sentisse incomodado com as suas palavras, um fariseu disse a Nicodemos que investigasse e visse se da Galileia tinha vindo algum profeta. Mas foi ele que desafiou os que cumprem a lei sem amor. «O que não tiver pecados que atire a primeira pedra.» Fugiram todos, acusados por si mesmos. Porque a pior acusação que podemos sofrer é a da nossa própria consciência. À dos outros podemos escapar, mas, à nossa, nunca. Cuidemos para que a nossa consciência, que está sempre connosco, seja uma companhia agradável. Como a de Jesus no presépio.” Disse pouco mais, o Padre Augusto. E não era preciso.
Quando chegou a casa, as primeiras saudades foram molhadas em lágrimas pela sua “santa”. Depois, vieram-lhe outras de espanto e de gratidão não imaginava a quem. Fosse Deus louvado, mas alguém lhe armara o presépio. Tal e qual como se ele mesmo o tivesse feito. E, em cima da amassaria, havia um bolo de massa sovada, licor de anis, de baunilha e de tangerina, como à moda antiga, e um canjirão de vinho e coelho guisado. Comeu e bebeu, agradecendo sem saber a quem o fazia ou deveria fazer.
Nessa noite sonhou que sonhava. Acontecia-lhe isso muitas vezes – sonhar que estava sonhando. E sonhou que sonhava que o próprio Deus lhe explicava como havia sido feito o presépio e como fora ali parar tudo o mais.
Viu os bonecos despertarem de um sonho de quase um ano. Estremunhados, acordaram com a inquietação do pastor manco, que os chamava aflito na caixa de sapatos onde estavam guardados. O pastor manco era o único que nunca estava perto da gruta, porque tinha uma perna partida havia muitos anos, e por isso, para se aguentar de pé, ficava encostado a uma pedra-queimada, num pasto de musgo. “Não há ninguém para armar o presépio”, disse. “Que é que se há-de fazer?”, perguntou outro pastor. “Fazemos o presépio nós mesmos.” Era boa ideia, mas quem iria buscar o musgo? “Vai o limpa-chaminés, que está habituado a subir e descê-las como ninguém.” Assim foi. Colheu musgo do tronco da velha figueira, do muro virado a norte, de entre as moitas de junquilhos. As pedras do presépio estavam todas guardadas naquilo que durante muitos anos fora a “casinha”, ao pé do curral do porco. Depois pôs-se cada um na sua posição do costume. Foi então que a lavadeira voltou à pressa para casa e fez os licores, cozeu a massa e guisou o coelho. Mas o pastor manco fora o último a chegar, e por isso ficou uma vez mais lá no fim do presépio.
No outro dia, pegou no pastor manco e encostou-o à manjedoira. (Deus só não lhe explicara no sonho que os Judeus não comem carne de coelho.)
Natal de 2010
Daniel de Sá
Nota: Legenda Presépio da casa do Daniel. Foto de Sérgio Lourenço