Com a devia vénia da Comissão de Cultura da Câmara Municipal das Lajes do Pico, antes de principiar esta fala de hoje, desejo fazer uma referência que se me afigura necessária.
Permitam-me que, num instante modesto, faça uma breve alusão a este espaço, onde nos encontramos e que me trás à memória cansada, um mundo de recordações.
Em 1947, salvo erro, as armações baleeiras das Lajes do Pico, (eram sete ao tempo), atravessavam um período difícil. A II Grande Guerra Mundial havia acabado. Os produtos fabricados sofriam feroz concorrência e importava modernizar o fabrico, para que o mercado internacional não falhasse.
São Roque e Horta possuíam já as respectivas fábricas e, principalmente a última, fazia enorme pressão para que as armações lajenses não conseguissem instalar uma unidade congénere. Foi uma luta. Até no teor do respectivo pacto social procuraram intervir. Tudo se foi vencendo e um dia, reunidos os gerentes das armações de Lajes e Ribeiras, na Câmara Municipal, procedeu-se depois à elaboração da respectiva escritura no Cartório Notarial. Por acaso e dadas as minhas modestas funções de então, coube-me lavrar a escritura. Quando chegou ao momento de indicar, para nela ficar exarada, a respectiva gerência, o meu espanto foi enorme. Por unanimidade escolheram-me, eu que nem sócio era, para integrar o trio. E lá fiquei. A respectiva escritura, publicada depois no jornal “O Dever”, como era de lei, diz o resto. Houve que trabalhar. Do projecto do imóvel foi autor o engenheiro (antes, denominava-se de agente técnico) Mário Jorge, que, numa visão acertada, soube adaptá-lo ao terreno onde havia de ser implantado o imóvel. E ele aí está.
I – A PAISAGEM
O Pico é uma ilha de sonho. Quantos por cá hão passado, não esquecem a beleza das suas paisagens, o perfume dos seus arvoredos, a maravilha dos seus miradouros. É uma ilha rica de bens e de encantos e de um clima que atrai, na época estival, os vizinhos das outras ilhas. Os Picoenses, embora emigrados para a Terceira, Faial, São Miguel ou Lisboa, retornam, mais que não seja por uns escassos dias, a retemperar a saúde e a repousar das fadigas.
Vitorino Nemésio, que por cá andou alguns dias, (1947) escreveu (“Corsário das Ilhas”, pág. 134) “Só a Vila das Lajes, capital e assento dos primeiros povoadores, conserva no seu traçado e na massa do seu casario os sinais de uma capitalidade desaparecida. – Era, além disso, a capital baleeira – e a baleia ainda é a grande fonte de riqueza da ilha.”
E, depois, referindo a Montanha, diz o douto Mestre: “Passo os mistérios’ -zona de lava cínzea onde mal brota a urze e medra algum recente e benéfico punhado de penisco. Contorno os pesqueiros sem conta, as praiazinhas inóspitas, as pontas cravadas num mar sanhudo e azul como nenhum. À esquerda ou à direita, na ida ou na volta, o Pico não me deixa. São três mil metros de lavas acasteladas que atalaiam as grandes solidões insulares onde abri os olhos ao mundo”(o.c., pág. 136)
Por seu lado, Raul Brandão que por aqui viajou um quarto de século antes (1924), apesar de ter uma visão mais tétrica da ilha negra, acaba por afirmar: “O Pico é a mais bela, a mais extraordinária ilha dos Açores, duma beleza que só a ela lhe pertence, duma cor admirável e com um estranho poder de atracção. É mais que uma ilha – é uma estátua erguida ao céu e amoldada pelo fogo -é outro Adamastor como o do cabo das Tormentas.”(Ilhas Desconhecidas” 1926, pág. 103). E referindo as gentes da ilha, acaba por afirmar:”Os picarotos são os mais destemidos homens do mar do arquipélago, tisnados, secos, graves, leais.” (O.C. pág. 88) .
Qualquer dos notáveis escritores encontraria hoje um Pico diferente. Desapareceram as baleias e o cheiro característico que elas traziam à ilha. Os mistérios encheram-se de vegetação, embora selvagem. Estradas diversas desventraram a ilha e hoje é fácil subir ao alto, onde existem verdejantes pastagens, esbeltas lagoas, montes e vales luxuriantes.
No redor da Ilha quase desapareceram as casinhas negras as adegas e as abegoarias que causavam a muitos, “uma grande solidão e uma grande tristeza“, para serem substituídas, ilha à roda, por belos e elegantes prédios, cujos projectos, de alguns deles, foram trazidos pelos emigrantes retornados.
Sem ofensa para as demais, podemos afirmar com Raul Brandão: “O Pico é a mais bela, a mais extraordinária ilha dos Açores… dominada pela Montanha grandiosa, a mais alta de Portugal, que domina todas as que lhe ficam à roda e chega por vezes à ilha do Arcanjo.”
Cerca de dez pequenas lagoas, alem dos conhecidos “charcos”, se estendem na parte leste da Ilha, emprestando à paisagem uma visão de deslumbramento e de encanto, que nem todos conhecem. Refiro somente as lagoas do Caiado, da Rosada, do Paul, a Negra, o Landroal e a do Capitão. E também a do Peixinho. Desapareceu infelizmente a do Ilhéu.
Parece que se trata de duas ilhas que se foram aproximando em resultado de novas erupções. Dai resultou a milenária ilha do Topo “e o complexo da Madalena, ou seja a parte mais nova da Ilha.
Todavia é de não esquecer que, embora falemos em ilha velha e ilha nova, segundo os geólogos, qualquer delas conta milhares ou milhões de anos.
Aquilo que a história nos ensina e que nos chega de uma tradição oral ainda não corrompida e também, pela própria observação atenta, podemos considerar que a actual ilha do Pico foi formada em duas épocas distintas, ligando-se as duas partes através de uma costura, hoje classificada de “fractura” que, partindo da Silveira, do lado Sul, vai atingir a zona da Canada da Bragada, em Santo António, a Norte. E isso confirma-se com as crises sísmicas das últimas décadas, as quais, desenvolvendo-se principalmente na parte Norte, pouca influenciaram o Sul.
O Pico é, das ilhas dos Açores, aquela que possui uma das maiores variedades de espécies arbóreas. Em 1982 foram inventariadas 244 espécies de plantas. A propósito, o falecido Dr. Carreiro da Costa escreveu:”O Pico é sem dúvida, a ilha dos Açores Centrais e Orientais, que mais madeira produziu no decurso de cinco séculos de vida insular e aquela que, ainda agora, dispõe de maior variedade de espécies, no que toca a endemismo que tem sabido conservar” (“Árvores dos Açores”, in Boletim da CRAA, Nº.22. 1955, p. 69).
As zonas vulcânicas exigem um gesto de atenção. Foi ainda Raul Brandão que escreveu: “Absorvo-me na extraordinária paisagem mineral, no panorama que saiu das entranhas de fogo. Nem um sinal de vida – extensões mortas, calcinadas, inúteis, cuja beleza exterior consiste principalmente na linha, na sólida arquitectura dos montes erguidos até ao céu em perfis severos, na solidão e na cor que vestem, no esforço de quem despreza todos os pormenores inúteis para mostrar descarnado a Deus o seu sofrimento.” (Repito que o Autor visitou o Pico em 26 de Julho de 1924)
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