O Povo é o Pai da Pátria
( para AlexAs manifestações populares que vivenciamos comprovam a ocorrência de um parto ao contrário, em que o Povo saiu do armário e assumiu o seu lugar de Pai da pátria. Estaria resolvida, assim, pela consequente criação da Cidadania, a equação que condenava o Brasil pelo seu pecado original: a fundação de uma pátria sem Povo.
Pela primeira vez na história da humanidade, uma pátria, um Estado, uma nação, aceitos como legítimos — até então com ressalvas — geram aquilo que deveria tê-los parido: o Povo. É, mais ou menos, como um recém-nascido emprenhar e dar à luz a sua própria mãe.
No comportamento dos nossos políticos estava gravado o desrespeito aos anseios de um Povo que não se percebia como tal porque não era o elemento fundador da nacionalidade. Tudo se passava como se eles fossem nomeados para cargos de confiança, em vez de eleitos, devendo satisfações, portanto, apenas àqueles que estão no poder. Quando os políticos passaram a se unir para nos roubar impunemente, o jeito foi o Povo assumir-se como Pai e oposição e representar a si mesmo na tribuna das ruas. Seus gritos mudaram as coisas.
As passeatas, com seus vandalismos, são as alegrias e as dores do parto: sentimentos ambivalentes, em que sensações contrárias são simultaneamente vivenciadas. Há sangue, sim, mas uma nova vida é sempre perspectiva de esperança. Não se faz uma omelete sem quebrar os ovos. Muito bem, quebramos os ovos, as cabines de pedágio, O Itamaraty, o Congresso. Legal. Mas e o omelete, quede? Está na hora de o omelete, de o ovo genesíaco, explodindo em big bang, gerar o universo da paz social e do amor de que todos carecemos. Paz e amor! É isso aí, bicho!
Agora, em 2013, estamos vivenciando os anos 60 atrasados. Maio de 68 no mundo. Temos escolha no menu degustação de frases de efeito?
Entrada: é proibido proibir.
Prato Principal: a humanidade só será livre quando o último capitalista for enforcado com as tripas do último comunista.
Sem sobremesa, politicamente incorreta porque engorda.
Mas não podemos escolher, parece. Saíram do cardápio de palavras de ordem. Temos de aceitar tudo passivamente. Lembremos, contudo, que o lema “liberdade, igualdade e fraternidade”, da Revolução Francesa, foi inspirado em Rousseau pelos índios brasileiros.
O anarquismo preconiza a greve geral como forma de tomada do poder. Mas o problema é que, se todo mundo parar, você toma o poder para fazer o quê? Está tudo parado, sem luz, sem comida, sem supermercados, sem alimentos, sem hospitais, sem água. Não há ninguém para colocar no poder mas também não há nada mais por que lutar. Não é necessário usar uma bomba atômica para matar uma mosca. Não se deve nem matar a mosca, ensina a ecologia. E a melhor é a ecologia humana: não matemos o bicho-homem, não o agridamos.
Para compreendermos melhor, consideremos o Brasil um ser social que nasceu no século XVI e está vivo ainda no século XXI — ainda que dormindo. Em seus primeiros anos de vida, o Gigante Adormecido teve suas leis, instituições, governo e religião preparados fora daqui, no estrangeiro, em Portugal, a priori, de cima para baixo, antes da presença do Pai que deveria produzi-los: o Povo. Por incrível que pareça, na formação nacional, o Estado antecedeu o Povo. E, se não havia Povo, tecnicamente não se pode dizer que havia pátria.
Criados “de cima para baixo”, sem “consulta às bases”, então inexistentes, estávamos habituados a ser dirigidos, a não questionar ordens (que nunca fazem sentido), a não nos revestir do direito e da dignidade de cidadãos e a aceitar que os “líderes” decidissem ditatorialmente os nossos rumos. Parecíamos acostumados a um real político que não correspondia à realidade da população e que produzia leis e ações absurdas.
Tentemos entender a formação deste ser usando a sociopsicanálise: como o Povo é o Pai do Estado, a criação de um Estado em que não houve Povo produziu sérios problemas. Sem Pai, não foi possível a castração edípica. Sem castração edípica, não ocorreu a introjeção da proibição paterna, base do superego. Sem superego, não há instância censória, não há uma moral verdadeira. Há, isso sim, uma moral que usávamos socialmente, hipocritamente, sem convicção, sem acreditar muito nela. A moralidade do brasileiro existia muito mais por um empréstimo da moral do vizinho (que, por sua vez, a pegou emprestada de outro), por temor da censura e da vigilância dos olhares dos outros (“o que os outros vão dizer?”) do que por necessidade interna.
Evidentemente, essa moralidade emprestada do brasileiro teve sua origem no pecado original do país. Sem Pai, sem édipo e sem superego próprios — o que o impediu de criar suas próprias leis —tomamos emprestados o superego e as leis do primeiro mundo.
Como a introjeção da proibição paterna marca também o momento da introjeção das leis sociais — igualmente baseadas na proibição, no não pode —, essa deficiência marcou-nos de forma constitutiva e condicionadora, condenando-nos a uma atitude de marginalidade em relação a quaisquer regras e a uma circunstancial incapacidade de produzir leis que se adaptassem à nossa realidade. Realmente, oriundas desse quadro, só poderíamos esperar pelas leis absurdas e inadequadas que nos colocaram à mercê do Império do Planalto.
Assim, compreende-se que o Brasil tenha sido, até agora, o lugar dos corruptos, dos ladrões, dos criminosos e de outros marginais. Sua condição marginal à lei desde sempre inscreveu o Brasil em um quadro psicótico. Sem a marca legal primitiva, o psicótico não se inscreve na lei e não a aceita, qualquer que seja ela, restando-lhe apenas o espaço vital da loucura. Permanentemente isolado em seu mundo, incapaz de compreender o outro e de se fazer compreender, o psicótico tem em si todas as revoluções e nenhuma delas, já que não é subjugado por nenhuma ideologia, mas, por outro lado, jamais a enfrenta.
Acometendo o Brasil, a mais famosa das psicoses, a esquizofrenia, promoveu a dissociação, a desintegração e a fragmentação do Estado, da economia e da sociedade civil, levando à morte o sistema nervoso central — ou seja, o governo federal. Para arrematar a situação, o país, presa dos mais diversos delírios — de grandeza, de ciúmes, de perseguição e de outros mais —, tornou-se ingovernável, gerando o bendito caos social em que nos encontramos hoje e que é a fonte dos protestos de rua. Amém.
Na falta do Povo no século XVI, quando então seria o Pai do Estado, os participantes das manifestações preencheram simbolicamente esse vazio, por retroalimentação construíram o Povo possível, não o desejável, e transubstanciaram-se em revolucionários Pais da pátria. O sonho é um estado de psicose cotidiano, segundo Freud. Mas o Gigante Adormecido acordou de seu sonho e abriu os olhos: ele agora tem um coração, uma alma e uma personalidade e se impõe à realidade enquanto ser.
Ora, se a esquizofrenia social teve origem no fato de que o Estado brasileiro surgiu antes do seu Povo, isto é, nasceu sem o Pai — o Povo — que possibilitaria a sua inscrição na lei, então os recentes eventos são nossa chance de cura. O próprio Povo recuperou a brasilidade perdida, revestiu-se de Cidadania e ocupou o lugar simbólico do Pai no inconsciente nacional, com efeito de parto: ação retroativa ao século XVI e que deu origem ao novo Brasil: em seu princípio simbólico refeito passou a estar o seu fim atemporal, em um presente contínuo, ponte parideira que uniu o século XVI ao XXI e alterou a estrutura do passado.
A esperança anseia pelos seguintes fatos:
Que o lugar simbólico do Pai seja definitivamente ocupado pelo Povo manifestante.
Que o não do Pai-Povo crie limites, acabe com a impunidade, retire o Brasil da esquizofrenia e dê
origem ao superego — nosso juiz moral interno.
Que tomemos vergonha, atendamos as exigências da pátria e da nação agora constituídas e eliminemos seus crimes já! Só então haverá Ordem e Progresso e poderemos Trabalhar e Confiar.
*Oscar Gama Filho. É do Espírito Santo. Psicólogo.Escritor. Historiador,membro do IHGES