Tenho treze anos e quero ser escritor. Foi o professor que me explicou o que quer dizer ser escritor.
Tinha dez anos quando conheci o professor. Não gostei dele quando o conheci. Era um homem feio e velho, que olhava para nós como se tivéssemos feito alguma coisa que merecesse castigo. O olhar do professor magoava quando era de raspão e magoava ainda mais quando era fixo. O olhar do professor era quase sempre fixo. Usava óculos e os óculos escureciam assim que entrava na sala de aula. Por detrás dos óculos havia uns olhos pequeninos, que mal se deixavam ver. A pele das mãos e dos braços tinha manchas castanhas e era muito fina, quase transparente, com veias grossas.
Eu pensava que o professor estava quase a morrer. Que morreria antes de terminar a aula. O professor tossia muito e, às vezes, quando tossia mesmo muito, juro que lhe via pequenas lágrimas a saltarem por detrás das lentes escurecidas.
Fiquei zangado quando os meus pais me pediram para participar num programa-piloto com o professor. Participar no programa-piloto significava que não podia ir às aulas de moto-cross. Além disso, eu não sabia o que era um "programa-piloto". Foi a minha mãe que me explicou que um programa-piloto era uma espécie de experiência científica. Uma "experiência pedagógica", dizia ela. Havia na cidade um professor que tinha ideias curiosas sobre o ensino básico, o secundário, o superior, e assim por diante. O professor procurava alunos para testar essas ideias curiosas.
A minha mãe insistiu muito e eu disse que sim para ela parar de insistir.
Na noite anterior ao primeiro dia, não consegui dormir. Diziam-se muitas coisas do professor e do programa-piloto. Por exemplo, dizia-se que o professor ia pedir a todos os alunos que usassem lápis e papel. Eu nunca tinha usado um lápis. Nem papel. Já tinha visto um lápis. A minha mãe guardava um no fundo de uma gaveta mas não deixava que eu ou os meus irmãos brincássemos com ele. Nem sequer o meu pai estava autorizado a usá-lo. A minha mãe dizia que era uma recordação, que era uma antiguidade, que tinha pertencido à avó dela, que já não se vendiam lápis nas lojas, que não se viam em lugar nenhum e que, por essa razão, ninguém estava autorizado a utilizar o lápis lá em casa. Muito menos a afiar o lápis. (Nessa altura não sabia o que significava "afiar um lápis". Hoje sei.) Com papel também não tinha experiência. Uma vez vi uma folha de papel a voar no ar, num filme. Era uma folha grande e grossa. Do tamanho de um rapaz da minha idade. Por acaso até foi um rapaz da minha idade que apanhou a folha que voava no filme. Agarrou-a, guardou-a na mochila, e pôs-se a andar pela rua fora com a folha meio saída da mochila, todo contente.
Havia quatro alunos no primeiro dia de aulas. Não tinham conseguido mais voluntários para o programa-piloto. Não sei se o professor estava desiludido, não parecia desiludido. A primeira coisa que fez foi perguntar-nos o nome. Com um cilindro fino e branco (chamava-se "giz") desenhou riscos num quadro negro (que se chamava "ardósia") e os traços ficaram completamente parados no quadro, sem piscarem, sem se transformarem noutros riscos, sem desaparecerem. Os traços não reagiam a quaisquer teclas que premíssemos porque não havia teclas. Não havia cursor. Não havia bateria. Ninguém me disse isto, nem eu disse isto a ninguém, mas concluí o seguinte: se, por alguma razão, ninguém apagasse as letras escritas no quadro — em vinte, em trinta anos — os traços desenhados pelo professor ainda lá estariam.
Fiquei a pensar nisto.
Um dia o professor disse que chegara o momento de escrevermos na folha de papel. (Em cada carteira havia agora um lápis e algumas folhas de papel). Escrever em papel com um lápis não é fácil. É como desenhar letras com um stylus de carvão. (O professor dizia: "grafite"). No início é difícil mas depois habituamo-nos. É necessário ter muita prática. É preciso afiar os lápis muitas vezes e ter cuidado para não carregar com demasiada força e partir o bico.
O professor também nos deixou levar para casa alguns livros em papel desde que prometessemos que tentaríamos ler algumas páginas. Não era fácil ler livros em papel. Era necessário virar a página manualmente. "Virar a página" significava segurar o canto da folha entre o dedo indicador e o dedo polegar, com muito cuidado, e
transferir cada página da pilha da direita para a pilha que se vai formando à esquerda. Eu rasguei algumas páginas mas o professor não protestou. É mais fácil ler livros electrónicos porque as histórias estão lá "temporariamente", ou "por empréstimo" e, por essa razão, ler tem apenas a importância das histórias que existem "temporariamente" ou "por empréstimo". Nos livros eletrónicos as histórias transformam-se. Transformam-se de dia para dia. De hora para hora. De minuto para minuto. Por vezes até de leitura para leitura ou enquanto são lidas. As histórias transformam-se porque mudam "as circunstâncias", disse o professor. Muda a própria tecnologia. Mudam "os produtos que acabaram de sair". Mudam os noticiários, mudam os temas que estão na moda, mudam os interesses dos rapazes da minha idade. E os livros devem reflectir "o mundo em rápida mudança" ou "a rápida mudança do mundo", já não me lembro bem como disse o professor. Por outro lado, é mais fácil ler livros em papel porque o livro em papel não me diz que demorei demasiado tempo para ler uma palavra. Ou que saltei palavras. Não pergunta porque gosto de certas palavras, nem porque não gosto de certas palavras. Nem me diz que acabou de ser inventado um rebuçado feito de extracto de morango, mas sem sabor a morango (com sabor a framboesa…) e que podemos encomendá-lo já no linkabaixo. Nem me avisa que já estou atrasado para a escola (para a "outra" escola, não para o programa-piloto) e que, por já estar atrasado, "haveria toda a conveniência em retomar a leitura noutro dia".
O professor devia estar mesmo feliz nesse dia porque nos apertou a mão a todos no fim da aula e disse: "até amanhã".
No dia seguinte, além do professor, havia um inspector escolar na sala. Bem no meio da sala. O professor estava sentado à sua secretária, de olhos baixos, como se não soubesse que estava um inspector escolar no meio da sala. O inspector escolar era um homem grande. Parecia ainda maior quando abria os braços e falava alto. E enquanto falava – o inspector falava mesmo muito alto! — apontava para os alunos, para o quadro negro, para os grandes cartazes de papel com letras pintadas, e, finalmente, para as folhas de papel e para os lápis em cima das carteiras. O inspector escolar nunca tinha visto nada assim. Disse que, com aqueles materiais, os alunos nunca aprenderiam a usar as "ferrramentas pedagógicas adequadas à época em que vivíamos". As "ferramentas pedagógicas adequadas à época em que vivíamos", segundo o inspector, eram os materiais digitais. E não aprender a usar bem esses materiais era "prejudicial" aos alunos. (O inspector pronunciou com autoridade cada sílaba da palavra "pre-ju-di-ci-al"). Disse que usar papel era péssimo para o meio-ambiente, que dizimava as árvores, que o pó do giz fazia mal aos pulmões, que os alunos iam ficar doentes, se é que não estavam já todos doentes. O inspector teve um enorme acesso de tosse ao dizer "todos doentes", e disse ainda que "a capacidade de aprendizagem se atrasaria gravemente", talvez mesmo, acrescentou, "irreversivelmente".
Quando o inspector saiu, o professor disse que não havia aulas no dia seguinte, nem no dia que se seguisse, nem em mais dia nenhum. Os alunos ficaram calados, sem saber o que dizer. Eu fiquei calado, sem saber o que dizer. O professor disse que tinha de devolver a chave da sala no dia seguinte à tarde. Levantei a mão e perguntei se podia voltar no dia seguinte para aprender a ser escritor. É que eu – como já tinha anunciado à turma — queria ser escritor. O professor disse que eu ainda não podia ser escritor. É que o inspector escolar tinha interrompido o ano lectivo antes de ser dada a lição onde se ensinava a ser escritor. E essa lição não podia ser dada "fora de ordem", ou seja, "fora da sequência de aulas" que preparavam os alunos para a tal aula que ensinava a ser escritor. O professor aproximou-se da minha carteira, inclinou-se, e em vez de me dizer que tinha muita pena, sussurrou-me uma coisa diferente ao ouvido.
No dia seguinte, cheguei à hora do costume. Não havia alunos, só lá estávamos eu e o professor. O professor parecia contente ou, pelo menos, menos zangado do que era costume. Perguntou-me se eu sabia o que era ser escritor. Eu disse que não sabia bem mas que, mesmo assim, nada me faria desistir de ser escritor. O professor explicou que para ser escritor é preciso não gostar de escrever. Não gostar de escrever?, perguntei. Tu gostas mesmo de escrever?, perguntou. Eu respondi que sim. O professor ficou triste uns segundos e depois disse: "Queres ser escritor porque não sabes o que é ser escritor".
O editor automático "reconhecia as dificuldades que se colocavam à carreira de um jovem escritor" e até pedia desculpa por estar a causar aquela maçada. O editor automático recordava aos jovens aspirantes a escritores que escrever era difícil. Muito difícil. Difícil porque era necessário "agarrar" os leitores, "seduzir" os leitores e, sobretudo, "manter os leitores seduzidos". Dizia que os leitores não eram um "dado adquirido". (Eu não sabia o que era um "dado adquirido" mas não me atrevi a perguntar). O editor automático acrescentava que não se devia ter a "arrogância" de pensar o contrário do que ele tinha escrito. O editor automático insistia que os leitores gostavam de avós engraçadas. Sorridentes. Com muitas rugas. E verrugas. Tinham mais graça, mais interesse, mais mistério.
O professor disse que já tinha sido escritor e que não tinha gostado. (Hoje percebo que o que ele tinha sido não era bem escritor.) O professor disse que uma vez tinha escrito "Um rapaz partiu a cabeça e ela separou-se em duas metades iguais, como as duas metades de uma laranja". O programa não aceitou o que escreveu. O professor justificou a frase o melhor que pôde mas o programa continuou a impedir que ele a escrevesse. O professor resolveu "acionar todos os mecanismos necessários para defender o que tinha escrito" e pediu uma entrevista com um editor automático mais sofisticado. O professor teve sorte e em vez de um editor automático mais sofisticado, a editora deixou-o conversar com um editor de carne e osso! Este editor de carne e osso rejeitou a frase do professor ainda mais depressa do que tinham feito os programas automáticos. O professor não desanimou e resolveu submeter a mesma frase aos programas de edição automática de outras editoras. As editoras de literatura realista rejeitaram a frase sem qualquer explicação. As editoras de literatura infantil diziam que a frase não era suficientemente infantil. As de literatura de terror diziam que a frase não era suficientemente aterrorizante. As de literatura fantástica, que a frase não era suficientemente fantástica. As de literatura séria, que a frase não era suficientemente séria. E as editoras de livros cómicos e absurdos, que a frase não era suficientemente cómica nem absurda. Uma delas – uma editora com problemas, que precisava de autores com urgência — recomendou "O rapaz partiu a cabeça". Porque não dizer o que queria dizer de maneira simples e concisa? Para quê complicar as coisas? Sim, para quê complicar as coisas quando o nosso mundo já era suficientemente complicado?
FIM
António Ladeira nasceu em Almada, Portugal, em 1969. É licenciado em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa e doutorado em Línguas e Literaturas Hispânicas pela Universidade da Califórnia, Santa Bárbara. É actualmente professor de Literaturas Lusófonas e director do programa de português da Texas Tech University, nos EUA. Ensinou língua portuguesa e literaturas lusófonas nas Universidades de Yale e Middlebury College. Tem trabalhos académicos em publicações