O provérbio dinâmico – as voltas criativas que os provérbios podem levar
Onésimo Teotónio Almeida
Brown University
Resumo
Os provérbios são, por definição, sabedoria acumulada e codificada em curtas máximas, passíveis de serem usadas para racionalizar e legitimar determinados valores e ideias demonstrando que se enraízam num passado experiencial longínquo e idêntico ao presente. Todavia, no mundo contemporâneo em que nada consegue manter o estatuto de intocabilidade, o provérbio é também susceptível de ser desconstruído ou subvertido. O humor tem sido uma forma de subverter, desestabilizar ou simplesmente transformar o que é a priori tomado como pilar do saber tradicional.
Abstract
Proverbs are, by definition, accumulated wisdom codified in short maxims, ready to be used to rationalize and legitimize ideas and values. Their grounding on experiential, ancient past appear to make them apply to the present, thus conferring them a timeless status. However, in our contemporary world in which nothing holds a quality of untouchability, the proverb is also susceptible of being deconstructed, or subverted. Humor has been a way of subverting, destabilizing, or simply transforming what is usually taken as a pilar of traditional knowledge.
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É, da minha parte, um enorme atrevimento estar aqui, na capital dos provérbios, a falar de um assunto sobre que pouco ou nada sei. Na verdade, vir este amador a Tavira não implica coragem mas irresponsabilidade. Aproveito, aliás, o ensejo para dar parabéns à organização pelo trabalho desempenhado no domínio dos provérbios ao longo de todos estes anos. As boas reputações adquirem-se com muito esforço. Caso para dizermos que (Roma e Tavira não se fizeram com um vira. “Com um corridinho” seria mais ajustado, mas não rimava. Corridinho rima é com Minho e isso também não jogaria certo.
Desconheço o que terá estado na origem deste honroso convite. Para falar a verdade, só encontro o meu nome publicamente associado ao tópico deste colóquio por ter falado em Lisboa na apresentação de um livro de provérbios organizado por Fernando Pessoa . É esse todo o meu currículo neste campo, o que, como vêem, não é nada. (Ah! E ia-me esquecendo da minha recensão a uma colectânea de provérbios da Lusofonia, de Elisa Lopes da Costa .)
Cito provérbios, é certo, como o comum dos mortais, e até em tempos pensei escrever um texto a explicar a cultura portuguesa para americanos a partir de provérbios, mas cedo me apercebi da estupidez de tal empreendimento. Os provérbios anulam-se uns aos outros e, se bem que possam revelar aspectos de uma cultura, não permitem generalizações. Recordo-me perfeitamente de, na década de 70, ter lido um livro sobre filosofia africana em que o autor defendia a existência de uma tradição filosófica expressa em adágios (ver E. J. Alagoa). É óbvio que, por filosofia, o autor entendia mundividência, ou visão do mundo, isto é, um conjunto de máximas sobre a vida e o lugar do ser humano nela. Ora, se isso já seria problemático para uma cultura aparentemente homogénea como a portuguesa, imagine-se os problemas que se erguem a propósito de uma suposta “cultura africana” vista através dos seus provérbios. Como generalizar quando o que temos são ditados com origem nas muitas subculturas africanas, as mais ancestrais, e as adventícias, como a cristã e a muçulmana. Para qualquer pessoa minimamente familiarizada com a problemática da mundividência, surgem questões inultrapassáveis. Por isso não quero desperdiçar esta oportunidade de falar aqui enfronhando-me nesse complicado universo. Decidi-me, por isso, quedar-me num domínio bem terra a terra e limitar-me a um olhar curioso e despretensioso sobre a desconstrução e reconstrução de provérbios. As complexidades da vida moderna proporcionam-nos experiências bem diversas da vida tradicional do passado e, quando confrontados com a sabedoria dos povos codificada em máximas, apercebemo-nos das suas limitações. Na verdade, os provérbios captam e consignam a sabedoria popular e convencional em axiomas que muitas vezes se não aplicam às situações do nosso quotidiano na vida contemporânea. Daí que nos sintamos às vezes impelidos a reformular os provérbios de modo a adaptá-los a novas circunstâncias.
Mas estou a antecipar-me a mim próprio. Terei de voltar um pouco atrás e falar de alguns que me agarraram de modo particular por não serem propriamente tradicionais. E antes disso recuarei ainda mais até aos tempos em que me apercebi da força dos provérbios.
Tenho ainda vívidos na memória os que desde muito jovem fui ouvindo na família. A minha avó paterna era uma enciclopédia deles e debitava-no-los a propósito de tudo. Estou a ouvi-la ainda a recomendar-me: Não compres coisas inúteis a pretexto de serem baratas. Ou, referindo-se às minhas boas notas no meu primeiro ano: A igreja reza pelos que bem acabam e não pelos que bem começam.
Mas a minha avó materna forneceu-me um que até me serviu para tema num dos contos do meu Sapa)teia Americana. Quando uma jovem da minha família, já nos Estados Unidos, namorava um divorciado com quem estava disposta a casar, a mãe censurava-a e, profundamente desgostosa, condenava tal passo: Não estás a proceder direito! A minha avó comentou: Os tempos são outros, mulher. E olha que O direito do anzol é ser torto. Foi a melhor formulação do relativismo que alguma vez encontrei.
Nessa mesma colectânea de contos incluo outro em que cito um provérbio com que me deparei num livro na biblioteca da Brown. Curiosamente, tratava-se de uma obra em inglês sobre a revolução estudantil dos anos 60 e continha um “Portuguese proverb” a abrir em epígrafe um dos capítulos. Estava escrito em português e era para mim total novidade: Quando a merda tiver valor, o pobre nascerá sem cu. Nunca o tinha ouvido antes e achei magnífico para leitmotif numa estória sobre um pobre emigrante que a sorte jamais bafejara. Não me parecia ser humor lusitano. Não só me era desconhecido, como não me soava nada português. Curiosamente, muitos anos mais tarde estava eu no Brasil quando de repente reparei que uma nota de não sei quantos reais, nas minhas mãos, continha algo escrito em caligrafia muito rudimentar. Procurei ler e lá estava: Se a merda tivesse valor, o pobre nasceria sem cu. Afinal havia uma versão brasileira, estranhamente mais pessimista que a portuguesa, pois usa a forma condicional, não deixando a hipótese de a dita um dia vir mesmo a ter algum valor, o que por sinal hoje não nos parece nada estranho… basta olharmos à nossa volta e observarmos tanto do que agora é considerado valioso.
Quando faço um google à minha memória sobre provérbios, salta-me sempre uma história que ouvi há muitas décadas e que volta e meia eu conto:
Era um juiz português completamente convencido da profunda validade da cultura popular. Segundo ele, tudo estava já consignado na cultura dos povos, bastava saber perscrutá-la na sua linguagem. Então um dia surgiu um caso de homicídio e havia uma testemunha que pensava ter identificado o assassino, mas ele tinha um irmão gémeo e ambos negavam o crime, gerando sérias dúvidas sobre o verdadeiro autor dele. Foram os dois para a cadeia em prisão preventiva. Entretanto, durante o mês em que lá estiveram, um dos gémeos engordou dez quilos. Chegado o dia do julgamento, o juiz cortou a sentença. O criminoso era o magro. Perante o pasmo dos circunstantes, que não conseguiam vislumbrar qual dos dois réus era o culpado, o juiz explicou: Está claro na sabedoria popular que O que não mata engorda.
Por alguns tempos coleccionei provérbios americanos equivalentes a portugueses. Lembro-me de um que preferia ao nosso Quem lava a cabeça a burros, perde o tempo e o sabão. Em inglês é: Quem tenta ensinar um porco a cantar perde o seu tempo e chateia o porco.
Várias vezes tenho glosado provérbios. Por exemlpo, numa crónica sobre humor e casamento cujo tema era o facto de existirem dois momentos na vida – a morte e o casamento – sobre os quais não há quase nenhum humor nos postais que enviamos nessas circunstâncias, usei o título: Amor com humor se apaga.
Obviamente que não sou o único a fazer esse tipo de trocadilhos. Ainda recentemente encontrei dois exemplos em livros de autores portugueses. Marcello Duarte Mathias, no seu Diário da Abuxarda (2007-2014), escreve a dada altura:
Os meus cadernos de citações são isso mesmo: florilégio raro que me encanta, provoca, estimula, reconforta. Neles reencontro os meus gostos e certezas, e muitas das minhas paixões. Diz-me quem citas, dir-te-ei quem és!
No seu segundo romance, O Que Não Pode Ser Salvo, Pedro Vieira inclui uma paráfrase a um conhecido provérbio modificado: “De pequenino é que se torce o destino” .
Existe hoje uma geração jovem portuguesa, mais desinibida e desenvolta perante a língua herdada que está a encarregar-se de desconstruí-la e lhe dar voltas. Um deles é o poeta Ricardo Álvaro, com quem volta e meio troco e-mails. Em férias, enviei-lhe do Maine uma “nota bárbara” (como chamo os meus apontamentos diarísticos) sobre as ostras ali acessíveis a qualquer bolsa. Na resposta, o Ricardo escreveu: Com o mal das ostras posso eu bem. Mas não terminou aí o diálogo. O Álvaro escreveu que, se pudesse, só comeria peixe e mariscos. Avancei então, cautelosamente sem querer causar-lhe inveja, que no estado do Maine as ostras são baratas tal como a lagosta. Uma lagosta custa 5 dólares e por isso, em férias ali, alternamos os nossos almoços – um dia lagosta, outro dia bacalhau. O Ricardo Álvaro reagiu com este mimo: No Maine está a virtude.
Do mesmo poeta há também várias tiradas em estilo de anúncio comercial decalcados em provérbios, como esta sobre uma conhecida marca de carros: Quem SAAB SAAB.
Outra também dele, a propósito de um colóquio sobre a revista Orpheu onde Almada Negreiros foi tema: Alma futurista: Alma até Almada.
De uma vez, enviou-me um aforismo com sabor a provérbio: Não confundir os Paços do Concelho com os Conselhos do Passos. Ao que eu reagi de modo deveras ordinário: Não confundir com o que nos confode. Que, convenhamos, nada tem de proverbial.
Provérbio – ou intertexto paródico de um – foi este outro, precioso, que o Ricardo também me enviou: Mais vale Ser que Perecer, da autoria de Dalai Lima, de quem adiante falaremos. Respondi-lhe nos seguintes termos: Muito bom. E grande verdade. O pior é que Quem está vivo sempre perece.
Outra do Ricardo Álvaro, de entre as muitas que tem criado em torno de porvérbios, é Não deixes para amanhã o que podes lazer hoje.
Há outros dois autores portugueses grandes descontrutores da língua. Um é o falecido J. Palla e Carmo que, assinava por José Sezinando umas magníficas crónicas no Jornal de Letras, magníficas por serem um continuado de frases encadeadas, algo parecido com um sorites, de que ressaltavam tiradas com sabor a provérbios, como:
Foi Copérnico quem primeiro viu a estrela pular.
Os terroristas raciocinam por explosão de partes.
O Adágio de Albinoni, depois de muito tocado na rádio, tornou-se um adágio popular.
Os conferencistas ateus não têm Papas na língua.
Você sabe onde é que o Alberto moravia?
Quem não tem um Rolls, rói-se.
Os tecnocratas estão classificados por ordem analfabética.
Injustamente esquecido, as suas crónicas parcialmente reunidas no livro Obra Ântuma , de que eu possuía um exemplar de cujo desaparecimento só me apercebi quando o procurei para citar nesta charla. A obra de Palla e Carmo merece bem uma investigação atenta neste domínio de recriação de provérbios.
Claro que a paródia aos provérbios não é nova, muito embora eu esteja apenas a referir alguns exemplos mais criativos dos seus cultivadores em língua portuguesa. Com efeito, numa entrada precisamente intitulada “Provérbios parodiados”, o meu velhinho Dicionário de Provérbios, Locuções e Ditos Curiosos, da autoria de R. Magalhães Júnior e editado no Rio de janeiro pela Readers Digest em 1974, reza assim:
Foi moda no século XIX fazer jogo de palavras com os provérbios e ditos mais conhecidos, dando-lhes sentido novo. No Brasil, ainda recentemente os nossos humoristas se empenhavam em tais paródias, ou deturpações, de que serve de exemplo O Brasil espera que todos comprem o seu dever, em vez de O Brasil espera que todos cumpram o seu dever. Um dos personagens de Balzac, Mistigris, em “Uma Estreia na Vida”, tem a mania de parodiar provérbios, disso resultando coisas desta espécie: Chaque échaudé craint l’eau froide (cada escaldado teme a água fria), em lugar de chat échaudé (gato escaldado); Abondance de chiens ne nuit pas (A abundância de cães não faz mal) em lugar de abondance de biens (abundância de bens); etc. O Barão de Itararé é autor desta paródia: O homem põe e o diabo come ovos.
Ora, o Barão de Itararé (1895-1971) mencionado no meu Dicionário de Provérbios, considerado pioneiro do humorismo político do seu país, ficou famoso na cultura brasileira pelas suas frases impagáveis, muitas delas precisamente parodiando provérbios, ou que até se tornaram provérbios como esta Quando pobre come frango, um dos dois está doente. Recordemos algumas:
O que se leva desta vida é a vida que a gente leva.
Os homens nascem iguais, mas no dia seguinte já são diferentes.
Dizes-me com quem andas e eu te direi se vou contigo.
Não é triste mudar de ideias, triste é não ter ideias para mudar.
Mantenha a cabeça fria, se quiser ideias frescas.
Quem empresta, adeus.
O fígado faz muito mal à bebida.
O casamento é uma tragédia em dois atos: um civil e um religioso.
Viva cada dia como se fosse o último. Um dia você acerta…
Regressemos, todavia, aos nossos tempos e à desconstrução, recriação e paródia dos provérbios. A Internet veio proporcionar total liberdade criativa e são muitos os proverbios que circulam nas redes adaptados às novas realidades informáticas (pelo tom e pela linguagem, incluido algumas discordâncias morfológicas, percebe-se a sua origem maioritariamente brasileira). Por exemplo:
Amigos, amigos, senhas à parte.
Antes só, do que em chats aborrecidos.
Diga-me que chat frequentas e te direi quem és.
Não adianta chorar sobre arquivo deletado.
Em briga de namorados virtuais não se mete o mouse.
Hacker que ladra, não morde.
Quem clica seus males multiplica.
Quem envia o que quer, recebe o que não quer.
Quem não tem banda larga, caça com modem.
Quem semeia e-mails, colhe spams.
Diga-me que computador tens e direi quem tu és.
Uma impressora disse para outra: Essa folha é sua ou é impressão minha?
Na informática nada se perde, nada se cria. Tudo se copia… e depois se cola.
Recolhi estes via Google porque, como eu próprio escrevia num e-mail ao meu amigo Urbano Bettencourt, isto hoje Quem tem dedos vai ao Google.
Não poderei deixar de referir aqui a criatividade de um autor português contemporâneo que, diariamente envia pensamentos seus pela Internet para uma rede de assinantes e que já publicou um livro – Pensamentos de Dalai Lima – reunindo parte deles. Assina, portanto, com o nome de Dalai Lima, pseudónimo de Jorge Lima. Um exemplo do seu estilo pode ser esta paródia do provérbio inglês Não há uma segunda oportunidade de produzir uma primeira impressão. A marca distintiva do seu humor reside no facto de Dalai Lima não ter alterado em nada esse provérbio, apenas o enquandrou num contexto completamente diferente acrescentando-lhe uma simples assinatura. Fê-lo aparecer assim:
Não há uma segunda oportunidade de produzir uma primeira impressão.
Gutemberg
Do livro Pensamentos de Dalai Lima retiro algumas das paródias a provérbios conhecidos:
Não há maior ego que aquele que não quer ver.
In vino veritas, aqua in sanitas
Filho no privado, pai empenhado
Neanderthal pai, Neanderthal filho
Uma mentira mil vezes repetida arrisca-se a ser eleita
A casamento e baptizado, não vás sem seres obrigado
Para terminar este arrozoado, gostaria ainda de ter tempo de poder falar doutro tipo de elaboração sobre provérbios, uma que não toca neles, apenas os continua prevertendo-os. Trata-se de uma forma sincopada daquele clássico americano muito recomendado às mulheres antes do casamento: O caminho para o coração de um homem é o estômago, que mereceu de alguém o seguinte comentário: Quem pensa que o caminho para o coração de um homem é o estômago faz o ponto de mira muito alto.
A fórmula de paródia a que me refiro tem hoje o nome de paraprosdokian, de que já adiante falarei e que, na língua portuguesa teve como grande cultor o brasileiro Millôr Fernandes.
Millôr Fernandes entrou-me pelo gosto dentro era eu ainda todo adolescente. Nos Açores não tinha acesso ao Diário Popular, onde nesse tempo colaborou, mas ele arribou-me na revista Cruzeiro que o meu tio, em prolongadas férias na ilha vindo do seu Rio de Janeiro, assinava juntamente com O Globo, em cujas páginas me deliciava a espraiar os olhos e a descontrair o meu espartilhado português. Não fazia a menor ideia de quem fosse o dono de tão estranho nome em tão divertidas frases. E durante décadas nunca o soube. Ele surgia sempre por baixo de epígrafes ou de pensamentos soltos dependurados em páginas por aqui e por ali. Na minha mente, Millôr era frases. Curtíssimas. Como La Rochefoucauld e George Bernard Shaw.
Na verdade, nunca o li maior. Millôr era sempre breve, mas dizendo tanto – e muitas vezes muito mais – do que outros em longas e maçadoras tiradas. De facto, raramente em língua portuguesa alguém conseguiu economizar tanto o verbo. Mas era fulminante na sua brevidade, como uns pós de pólvora que redundam em explosões destruidoras. Em meia linha, uma tradução de best-seller – o melhor vendedor. Ele próprio fascinava-se com a economia verbal. De Idem, disse mesmo: que economia de palavras! Exímio nas definições, muitas vezes nem a uma linha chegavam: A boca é o aparelho excretor do cérebro. Se calhar talvez por ter consciência disso, reduzia o paleio ao mínimo. Nunca, porém, reduziu a inteligência nem a profundidade do golpe em que assentavam os seus aforismos, por vezes mini-tratados condensados. A enorme arte de inventar gralhas permitia-lhe reduzir um longo artigo a uma frase: O Brasil está cada vez mais cheio de pobremas. Ou: Em 1980 entrámos definitivamente na Idade Mídia. Mais um exemplo? A ociosidade é a mãe de todos os vices. Inventava constantemente novos meios de fazer trocadilhos: É bom não confundir amnesia com amnistia. A verdade é que, para além da criatividade exuberante e da perspicaz observação dos seres humanos e da vida em geral, porque o seu humor resultava de um profundo conhecimento deles (Nunca neguei a ninguém o direito de concordar inteiramente comigo) a força da sua escrita consistia precisamente na sua condensação, na brevidade que ele cultivava com esmero. E com convicção, porque sobre o humor disse, sem qualquer humor nem artifício retórico: O humorismo é a quintessência da seriedade.
Folheie-se o seu livro Apresentações, onde reuniu os textos seus sobre livros de outros. Sirva este exemplo “Apresentando (orgulhosamente) o escritor português José Saramago” no Jornal do Brasil em 1986: “Amor nos tempos de cólera, de García Marquez, é um belo livro. Memorial do convento, de José Saramago, é um livro definitivo.”
Verbatim, assim, sem mais nada. A lembrar-me a carta de recomendação mais curta que já li em apoio da promoção a catedrático de um matemático na Brown, numa das temporadas em que fiz parte do Conselho Científico. Para quem conhece os trâmites académicos americanos, as avaliações dos peers devem ser minuciosamente analíticas e longas. Um prémio Nobel de Harvard, porém, recomendava simplesmente By all means promote him.
Millôr era mestre na paraprosdokia, um “neologismo” que era usado na retórica grega dos sécs. I e II a. C., e foi recuperado no século XX. Etimologicamente, pará+prosdokía significa “contra a expectativa”. A frase caminha numa direcção e termina subvertendo inesperadamente o seu próprio início, como naquela clássica de Groucho Marx: A cara dela é toda do pai, que é cirurgião plástico (em inglês, a primeira parte da frase funciona muito melhor: she got her looks from her father). Um dos exemplos de Millôr que mais vezes cito é Corrupto habita todas as partes do mundo, quase todas no Brasil. Todavia são incontáveis as pérolas do género que criou: Sou um homem acima de qualquer corrupção, das que já me ofereceram até hoje. Ou: O homem é um animal lúdico. Felizmente a mulher também. Outra: Jamais aceite conselho – a começar por este. E mais esta: As estatísticas provam que as estatísticas não provam nada. E ainda: Fofoca deve espalhar logo, porque pode ser mentira. Uma última: Ah! Se eu tivesse vivido num passado como me lembro agora!
Paraprosdokians são também algumas tiradas clássicas, nem todas elas a partir de provérbios, como nestes dois casos que traduzo do inglês: Perder a mulher pode ser muito difícil. No meu caso foi mesmo quase impossível. Ou: Não falo com a minha mulher há 18 meses. Não gosto de interrompê-la. Seguem o mesmo esquema lógico daquele diálogo entre dois velhinhos em que um diz: A minha mulher é um anjo e o outro comenta: Tens muita sorte; a minha ainda está viva. Mas o esquema do paraprosdokian é também há muito aplicado a provérbios, como atrás demonstrei. Vou acrescentar – e termino mesmo – apenas três exemplos, o primeiro sendo aquele clássico de Zsa Zsa Gabor: Um homem não está completo até se casar. E então fica acabado. E estas duas variantes sobre um outro provérbio, que circulam anonimamente: O dinheiro não traz a felicidade. Mas ajuda muito. Ou esta variante: O dinheiro não traz a felicidade. Isto é, o dinheiro dos outros. (Já depois de escrito este texto, ao chegara Lisboa deparei com uma crónica de Pedro Sousa Carvalho no Público com o título Amor com amor se paga. Se houver dinheiro.)
Já depois de escrito este texto, ao aterrar em Lisboa deparei com um paraprosdokian no título de uma crónica de Pedro Sousa Tavares, no Público: Amor com amor se paga. Se houver dinheiro.
E quedo-me por aqui. Antes tarde do que nunca, dirão os ouvintes. Já basta de meter a foice em seara alheia. Mas já que abusei até aqui da vossa paciência, deixar-vos-ei só com mais um paraprosdokian final. O provérbio Quem sabem, sabe, teve em tempos um acrescentamento: Quem sabem sabe, quem não sabe ensina. A seguir encontrei este:
Quem sabe, sabe, quem não sabe, ensina. E quem não sabe, nem sabe ensinar, vai para a Administração.
Então eu posso encadear-me também nesta série aplicando ao caso da minha presença aqui: Quem sabe de provérbios, sabe. Quem como eu não sabe, vai a um colóquio e faz uma comunicação.
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