O que a lusofonia não é
No mundo de língua inglesa, o termo Lusophonetem vindo a vulgarizar-se sem grandes problemas. Não significa isso que The New York Times ou Obama o usem, mas os pequenos círculos académicos, depois de uma certa resistência e de as pessoas se aborrecerem de usar a demasiado longa designação de Portuguese and Brazilian and Afro-Portuguese language (ou outros termos equivalentes para este último grupo, que os americanos em particular acham cumbersome, eles que preferem siglas e, nas palavras, os monossílabos de três letras o máximo), não têm tido problema em aderir à simplificação que Lusophone constitui.
Há décadas o debate era sobre se se devia dizer Luso em vez de Portuguese, pois os americanos não identificavam o termo connosco. No nosso caso da Brown, em 1975 acabámos por usar Portuguese and Brazilian Studies para designar o então criado Centro (depois Departmento, a partir de 1991). E no entanto já existia (e continua a publicar-se) na Universidade de Wisconsin Madison, a Luso-Brazilian Review e, em Harvard, Francis Rogers organizara na década de 50 os famosos Luso-Brazilian Colloquia.
Com o acrescentamento de África de Língua Portuguesa a Portugal e Brasil, passou a tornar-se urgente uma outra solução, e nenhuma melhor que Lusophone surgiu até agora. Por isso passou a ocorrer com mais frequência, embora a princípio com renitências, todavia apenas cingida aos próprios meios lusófonos. Os americanos usam Francophone e Anglophone sem rebuço. (Brian Rothschild, do Museu dos Baleeiros em New Bedford, há tempos dizia-me que a primeira vez que ouviu falar em Lusophone pensou que se tratava de um novo telefone lançado por Steve Jobs no mercado.)
De facto, lusófono e lusofonia são termos muito recentes ainda sem grande carga semântica, como acontece a outros usados ao longo de séculos. Se utilizamos essas palavras como mera referência a um colectivo, o de falantes da língua portuguesa, não descortino razão para que impliquem qualquer comotação negativa, muito menos que possam sugerir uma afiliação automática a qualquer projecto colonialista (embora a forma substantivada, reconheço, seja mais susceptível de abusos). De qualquer modo, a possibilidade de usos indevidos não deve impedir nada de ser criado.
De facto importa desdramatizar o uso do termo (tenho desenvolvido as minhas razões em vários escritos; um dos mais acessíveis circula na Net: Lusofonia o que a língua não é), e não inventar monstros onde eles não existem. Sabia-se há muito, mas desde Wittgenstein a fórmula ficou lapidarmente exarada: o sentido é o uso.
Neste aspecto, parte da culpa recai sobre académicos que politizam excessivamente realidades por vezes bem simples e não raro colaboram na confusão teórica quando o seu papel deveria ser o oposto. Por exemplo, a excelente revista Portuguese Literary & Cultural Studies, publicou recentemente um número especial sobre o tema Lusofonia and its futures, sinal evidente de que o termo está finalmente a vingar. No interior, é claro, surgem algumas intervenções revelando os habituais deslizes teóricos, uma delas do próprio director da revista, João César de Castro Rocha. Por três vezes pelo menos refere-se ele a uma suposta Lusophone worldview, o que quer que isso seja. Num caso fala das forças e dilemas da visão do mundo lusófono pág. 3); noutro menciona a faca de dois gumes (doublebind) que essa visão constitui (p. 5) e, num terceiro, volta a referir esse doublebind que leva a um paroxismo p. 7).
Ora estamos aqui na presença de um problema inventado sem qualquer necessidade porque não existe nenhuma visão lusófona do mundo (há muita gente que tem uma visão para o mundo lusófono, todavia isso é outro assunto), pela simples razão de haver tantas visões do mundo no universo lusófono quantos os habitantes que ele contém. A visão do mundo (ou mundividência, se preferirem, de Dilma Russeff difere da de Pinto da Costa; ambas diferem da de Cristiano Ronaldo, e as três não terão muito em comum com a de D. Manuel Clemente. Os contrastes podem tornar-se mais gritantes: um taxista no Rio de Janeiro, um empregado de hotel em Bragança, um advogado em Moçambique, um polícia na Guiné, um estudante em Dili e o multiplicar de possibilidades ficará ao gosto do leitor.
Poderia aduzir aqui mais exemplos do mesmo teor colhidos em debates sobre esta questão, mas o apresentado é suficientemente elucidativo, sobretudo em virtude do lugar onde está impresso.
Resumindo: tomemos a sugestão de William of Occam e agarremos da sua navalha. Basta de complicarmos problemas gratuitos e sejamos práticos. Não empolemos. Quedemo-nos pelo significado das palavras e não criemos complicações onde elas não existem. Se me é permitido reproduzir aqui em fecho o que escrevi noutro lado, recordo que um lusófono é um falante da língua portuguesa; um lusófilo é alguém que gosta do que é luso, ou português. Um lusófobo, por sua vez, é quem detesta isso mesmo. No mundo dos países lusófonos há inúmeros lusófilos e não poucos lusófobos (sobretudo se nunca viveram fora do universo lusófono!). No resto do mundo há um razoável grupo de lusófilos e uma boa maquia de lusófobos que não são lusófonos; mas também fora dos 8 países lusófonos não faltam lusófonos e eu sou um deles. Por isso faz sentido referir a lusofonia como o espaço cultural dos falantes de português. Nele, além de lusófilos e lusófobos, há brasilianófilos e brasilianófobos. E por aí fora. Custa a crer que uma certa lusofobia crie tanta lusofolia.
Onésimo Teotónio Almeida