O Rosto Humano De Deus
Em Livro De Cunha De Oliveira
No ano de 1986, quando a explosão da nave espacial Challenger deixou o povo americano em pânico e luto, o presidente Ronald Reagan, na sua eulogia, confortou a nação com a esperança de que os sete astronautas deixaram a superfície da Terra para tocar a face de Deus – to touch the face of God. – O ano passado, com a publicação do livro O Rosto Humano De Deus, , Cunha de Oliveira encontra a face de Deus, nas palavras do apóstolo João, quando Filipe diz “Senhor, mostra-nos o Pai, e isso basta”, ao que Jesus responde: “Há quanto tempo que estou convosco, e não me ficastes a conhecer, Filipe? Quem me vê, vê o Pai. Como é que me dizes então, “mosta-nos o Pai? Não crês que Eu estou no Pai e o Pai está em mim? As coisas que eu vos digo não as manifesto por mim mesmo: é o Pai que, estando em mim, realiza as suas obras. Crede-me: Eu estou no Pai e o Pai está em mim; crede-o, ao menos por causa dessas mesmas obras (Jo, 14, 5-11)”. O “Rosto de Deus”!
Com a leitura do Rosto Humano De Deus, o leitor seguindo as peugadas de Cunha de Oliveira, passará a referir-se à segunda pessoa da Trindade, como o Senhor Jesus. É precisamente na contracapa do livro que o autor chama a atenção para a impropriedade do uso comum do nome Jesus Cristo: “… é que Cristo não é nome de pessoa mas de categoria; não é substantivo mas adjectivo… que quer dizer ‘ungido’ e donde nos veio o termo Messsias. Na Bíblia ‘cristos’ e ‘messias’ foram aqueles quem Deus escolheu, predestinou e dotou de dons especiais para poderem levar a cabo acções de salvação”.
No Rosto Humano De Deus, Cunha de Oliveira descreve a evolução do Cristianismo nos primeiros séculos da sua existência. Começa com noções preliminares sobre Jesus de Nazaré: o Messias, o Filho de Deus, Filho de Deus (sem artigo) e Filho do Homem. Inclui tópicos como Jesus “o homem” com pais biológicos. Jesus considerado, pelos seus contemporâneos, como profeta com poderes especiais. A subalternidade do Filho em relação ao Pai. Como título de Senhor não equivale a divindade. Ainda, no que se refere à divindade, lê-se na página 21: “ Quanto aos Sinópticos, em parte alguma se pretende provar que Jesus de Nazaré é Deus. Muito menos por uma afirmação directa do mesmo”. O autor esclarece que “o dogma da divindade do Senhor Jesus…só foi definido pelo concílio de Niceia I, no ano de 325”. É desta maneira “que não se pode ser nem dizer católico sem crer, ou acreditar que o Senhor Jesus de Nazaré é Deus”, pg 19. Outro ponto de exegese é: “ A Ressurreição do Senhor Jesus como obra de Deus e não d’Ele próprio”, pg. 41.
Como o Cristianismo é uma religião nascida no e do Judaísmo, Cunha de Oliveira explica a passagem deste para aquele, o corte subsequente do Cristianismo com o Judaísmo, a cristianização dos primeiros pagãos, perseguições e o surgimento de heresias como desvios da ortodoxia. Expõe o leitor aos concílios de Niceia I (325) e Constantinopla I (381), onde a formulação do Credo não aparece isenta da interferência do Poder temporal, o que levou Valentiano I (364-375) a dizer que “ um leigo não se devia intrometer nas questões da Igreja”. As lutas, contendas, acusações e violências entre cristãos escalaram-se ao ponto do historiador romano Amiano Marcelino (330-395) escrever: “Não conheço feras mais perigosas e inimigas dos homens, que os cristãos uns dos outros”. Pg. 288.
Quanto à magna questão do Espírito Santo, Cunha de Oliveira nota que “O pensamento cristão sobre o Espírito Santo, em pleno século IV da Era critã, e tanto quanto no-lo permitem conhecer as fontes escritas de então, não era nada ou muito pouco do que pensamos, cremos e acreditamos hoje.” Acrescenta o seguinte quanto à pessoa do Espírito Santo, como uma das da Trindade divina: “Esta ideia da Trindade divina foi sendo elaborada lentamene na Cristandade à medida que se iam tomando como pessoas divinas o Pai…o Filho… e o Espírito Santo). Pg. 260. Foi só mais tarde, que a Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo) se tornou objecto obrigatório da fé católica.
O autor dedica o último capítulo do seu livro à análise “ de textos bíblicos de que não resulta claramente a afirmação da divindadde do Senhor Jesus”, pg. 301, acabando por concluir que “…de acordo com o pensamento de Paulo, há um só Deus – o Pai; e um só Senhor – Jesus Cristo. De modo que uma é a divindade e o ser divino; e outra, a Soberania e o ser senhor, o que não é, em rigor de termos, o mesmo que ser Deus”. Pg. 339.
O teólogo Cunha de Oliveira baseia a sua exegese no “primeiro fruto da literatura cristã” – os Evangelhos, Actos dos Apóstolos e Apocalipse”. Une a teologia de tipo narrativo e histórico à teologia especulativa e filosófica dos Padres Apostólicos, dos Apologistas Gregos e da Patrística. Refere-se ainda a autores “contemporâneos dos apóstolos e da primeira geração cristã: o judeu Flávio Josefo (37/38-103, e os romanos Cornélio Tácito (55-115), Plínio o Moço (61/62-112/113 e Tranquilo Suetónio (69-141)”.
A análise do autor é feita a partir dos textos originais – aramaico (língua natal de Jesus), hebraico e grego. A cronologia dos acontecimentos aparece inserida no seu contexto geográfico, cultural e semântico. (É de notar uma evolução semântica na literatura patrística e conciliar). O escritor detem-se na explicação de certos hebraísmos e na definição de termos que exigem contextualização ( ortodoxia, heresia, parúsia, servo, senhor etc.; recorre à etimologia de palavras no texto original e define diversos conceitos. Para facilitar a leitura do texto e a sua compreensão imediata, Cunha de Oliveira faz a transcrição directa das citações bíblicas. A profundidade de pensamento do autor e a mecânica da exegese bíblica materializam-se numa linguagem clara, erudita e elegante. Surpreendente é ainda a constante omnipresença que o autor revela de todo o conteúdo bíblico e diversas traduções, o que lhe permite comparar, objectar e concluir. Não deixa de ser fascinante e elucidativo a percepção que o leitor toma do que é fazer exegese e teologia.
O Senhor Jesus, no Seu tempo, enchia as pessoas de espanto com os seus ensinamentos e revelações. O autor de O Rosto de Deus também não parece escapar a este espanto no seu estudo das Escrituras:”…e agora porventura para nosso espanto: O Senhor Jesus o que Se considerava era um profeta. Naturalmente, como todos os que o foram em Israel”, pg. 316. Penso que o eventual leitor desta obra – se encherá igualmente de um espanto esclarecido e reconhecido, apercebendo-se de que a linha de separação entre o divino e a vulnerabilidade humana é ténue e que só a Fé lhe pode avivar a cor. Aliás, o próprio autor, ao mencionar o recurso que o evangelista João faz do simbolismo, clarifica que o “discurso sobre Deus” (pg. 321) não é fácil.
Ao explicar a origem etimológica da palavra Igreja (assembleia, reunião), o autor acentua como a Igreja, a princípio, foi uma Comunidade de Fé, e não uma instituição como veio a ser a Igreja católica. É assim que, remontando à Última Ceia, termino com uma citação, de Cunha de Oliveira, de natureza inspirativa e quiçá significativa do seu tecido cristão pessoal: “ Poderia acrescentar mais esta observação : por este texto: ‘dei-vos exemplo’…, podemos ficar sabendo que a religião cristã é, acima de tudo, uma religião de compromisso: pensar, como Ele pensou; sentir, como Ele sentia; fazer, com Ele fez; servir, como Ele serviu; amar, como Ele amou; perdoar, como Ele perdoou; enfim, ser como Ele foi, tanto em relação a Deus, à Natureza e aos outros.” Pg. 128.
Poder-se-à dizer que Cunha de Oliveira, de diferentes maneiras, tem laborado uma vida inteira para responder às perguntas de Quadrato no seu Discurso a Diogneto (imperador romano), no ano 125: “Primeiro, que Deus é este que confiam e que espécie de culto lhe prestam, para que assim todos eles (os cristãos) dedenhem do mundo e desprezem a morte, sem que, por um lado, creiam nos deuses que os gregos têm como tais e, por outro, não observem as superstições dos Judeus. Depois, que amor é esse que nutrem uns pelos outros. Finalmente, porque só agora aparece no mundo, e não antes, esta nova raça e este novo estilo de vida”. Pg. 185.
Nuno A Vieira
In:Notas de Rodapé