O Sol nas Noites e o Luar nos Dias
Por Diniz Borges
Porque: a poesia é para comer*
O livro é como um rio. Tem a sua
nascente e a sua foz.
E assim como o rio se mistura
na vastidão oceânica,
funde-se o livro na massa do saber universal.
A sua nascente é o autor. A foz, o leitor.
Alocução proferida por Natália Correia,
na inauguração da Livraria Nove Estrelas,
em Ponta Delgada, em 7.12.1981,
dirigida por José de Almeida
Não se lê Natália Correia. É uma poeta par se ir lendo e relendo. Quem descobre a sua poesia inebria-se na teia das suas múltiplas metáforas, na musicalidade das suas majestosas palavras, na densidade filosófica dos seus versos, na heterogeneidade da sua lírica. Natália seduz-nos com o seu misticismo, com a lava que transborda dos seus poemas e com a ousadia dos temas que aborda. A vida e a obra de Natália Correia, são testemunhos do célebre pensamento de Flaubert:não existe qualquer elemento da vida que não contenha poesia. Natália Correia, é um poema.
O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, é uma antologia que reúne toda a sua obra poética, incluindo alguns inéditos. Publicada em dois volumes, pouco antes da sua morte em 1993, pela Circulo de Leitores e mais tarde, em 1999, com uma segunda edição em Poesia Completa pela chancela da Dom Quixote. É um livro majestoso com o qual podemos passar longas horas de reflexão e com o qual se vai vivendo e revivendo o pensamento português e a cultura universal, começando com o prefácio, da autoria da própria poeta, que só por si é uma peça literária de extrema erudição, um grito à liberdade e à excelsitude criativa da poeta. Natália Correia ao escrever sobre a sua obra, disserta sobre a magia e a responsabilidade da poesia: “pelo que assiste toda a razão aos poetas de pesquisarem o ouro de um futuro vedado pela ordem artificial das ideias caminhando para um passado mítico. É-lhes pois irrecusável a competência para resolver as relações do homem com a natureza. Ou seja: consigo mesmo”.
Começando com Rio de Nuvens, publicado em 1947, até aos seus últimos poemas, publicados pouco antes de morrer, vive-se, na poesia de Natália Correia os grandes temas da civilização ocidental, todas as grandes preocupações do ser humano moderno estão patentes nesta coleção, assim como o peso do passado. Lá está o relacionamento com o mundo que nos rodeia, as vicissitudes do quotidiano, as discussões artísticas, as nuances e os subterfúgios de um país, dum continente, duma civilização. E lá está ainda a relação entre a humanidade e o transcendente, num espiritismo impressionante, com a presença de todos os deuses, todas as musas e todos os elementos do mundo antigo e do mundo moderno, porque tal como escreveu, resta ao poeta: o engenho de fazer ouvir o sopro da Alma Universal na palavra em que se incuba a transformação da alma da humanidade.
Ao longo de O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, ou seja, em toda a sua obra poética está um namoro constante entre o Divino e o Profano. A sua poesia está repleta de múltiplas referências à Tradição antiga, de um diálogo constante com os todos os Deuses, de ligações aos astros, de uma convivência intima com o Mistério, de um aprofundamento constante com a sabedoria. Audaz, meticulosa, embrenhada pela odisseia, por vezes englobada num exuberante gnosticismo, Natália Correia, nesta sua antologia faz um percurso pela sua evolução como poeta, terminando com o seu próprio Credo onde se expõem, ainda mais uma vez, para o mundo, e desta feita, sem máscaras:
Creio nos Anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de Diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,
Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,
Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,
Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.
A Antologia é ainda um percurso pela história de Portugal, desde os tempos primitivos, passando pelos sonhos de Abril, até aos primeiros anos das vivências democráticas. O Sol nas Noites e o Luar nos Dias está repleto de poemas alusivos a eventos, situações, mitos e personalidades da nossa história nacional, incluindo algumas criações ligadas ao tempo que passou na Assembleia da Republica, sendo um das mais humorísticos e citados, o poema, “O acto sexual é para ter filhos — disse ele” como resposta ao deputado do CDS, João Morgado, num debate na Assembleia da Republica que trouxe as maiores risadas a todas as bancadas do Parlamento. É que, lendo e relendo esta sua /nossa coletânea, fica-se com a imagem nítida que Natália Correia não colocava tabus na sua poesia. Escrevia, com a mesma voracidade, a mesma paixão, a mesma sublimidade todos os seus poemas. Sabia muito bem, que tal como escreveu Platão:a poesia está mais próxima da verdade vital do que a história.
Natália Correia dá-nos neste magnífico compendio poético uma amálgama de lições fundamentais compostas pela mais refinada poesia, alicerçadas, como se disse, no pensamento ocidental, erguidas com armações constituídas no principio da liberdade suprema, conjugadas com o misticismo do Divino e o mistério do Espírito, porque tal como nos afirma na introdução que escreveu a 28 de Outubro de 1992, pouco tempo antes da sua morte: “cada poema, por mais elevado, evanescente ou injetado de virulentas ou mesmo fesceninas invetivas, é uma lição de moral”.
Continuo lendo e relendo esta sua Poesia Completa, com a certeza que em cada leitura, e releitura, descobrirei ainda outra novidade, outra metáfora, outra preciosidade literária, outro verso perfeito, outra referência magistralmente escolhida e inserida, outro desafio e acima de tudo outra celsitude poética. E continuarei, sobretudo, porque acho cada vez mais essencial, que na banalidade desta nossa contemporaneidade, onde tal como Natália escreveu, andamos por aí extremamente “subalimentados do sonho” possa ainda ter coragem e a ousadia de tentar ver as “paisagens” que nem sempre são vistas, e colocar, com a sabedoria e a bênção da Poeta, algum sol nas minhas noites e uma boa tonalidade de luar nos meus dias.
*do poema A Defesa do Poeta
Natália Correia
O Sol nas Noites e o Luar nos Dias
Lisboa: Projornal, 1993.
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Diniz Borges,escritor açoriano,natural do Cabo da Praia,Terceira.
É licenciado em Ciências Sociais e Estudos Literários, pós-graduado em Ciências da Educação e Mestre em Literatura Étnica dos Estados Unidos. É professor de língua e cultura portuguesa na Tulare Union High School, no College of the Sequoias, em Visalia, CA; e,também, tem lecionado língua portuguesa na Universidade Estadual da Califórnia. Personalidade destacada na comunidade luso-americana como formador de professores de língua estrangeira (Estado da Califórnia).
Entre numerosas atividades que desenvolve e cargos que exerce, é Presidente da Associação de Professores de Português dos EUA e Canadá e coordenador da página literária «Maré Cheia» do Portuguese Tribune, Vice-Presidente da Tulare-Angra do Heroísmo Sister City Foundation, membro do Concelho Consultivo da Luso-American Education Foundation; é moderador de televisão em língua portuguesa na estação KNXT Channel 49, da diocese de Fresno, radialista e mantém intensa
atividade na imprensa comunitária norte-americana e regional dos Açores.
É autor de América: o outro lado do sonho (1997), América: o outro rosto (2003) e da antologia de poesia açoriana sobre a emigração, Nem sempre a saudade chora (2004).