O Surdo
Não sabia o que havia de pensar de Macau. Chegara com um bom contrato, daqueles que se media em patacas. A firma dera-lhe a possibilidade de ir para um dos apartamentos, incluídos no seu património, desde que aceitasse reparti-lo com um colega. A empresa era chinesa e portanto o colega seria chinês. Tudo bem. Aceitou a proposta. Seria interessante repartir o seu espaço com um chinês. Quantos se podiam gabar dessa sorte?
Para os portugueses, mas também para muitos europeus e americanos, os chineses continuavam a ser um povo exótico e distante, multiplicando-se em acções e comportamentos inesperados. Gabriel, ainda que com algumas luzes sobre a cultura chinesa, não escapava a muitas das ideias-feitas partilhadas pelos ocidentais.
Quando meteu a chave à porta, rezou a todos os santinhos para que o seu novo colega fosse uma pessoa acessível, civilizada, educada e tivesse mais não sei quantos requisitos.
Entrou a medo. Não fosse de lá saltar um dragão ou coisa que o valha. Fénix não havia de ser, pois sendo ele do sexo masculino, aos patrões nem lhes passaria pela cabeça dar-lhe o mesmo tecto que cobriria uma airosa chinesinha, uma daquelas que apareciam nos quadros antigos: cheia de delicadeza, meio esvoaçante e enroupada até não restar dúvidas sobre a sua compostura.
Abriu a porta a medo. Na sala, sentado numa cadeira de pau, almoçava calmamente um velho chinês. Pousou os pauzinhos numa pequena taça de porcelana sem qualquer sobressalto por ver um barbudo estrangeiro a irromper-lhe casa adentro. Devia ser muito idoso, pois já se lhe notavam as rugas. Ora quando os vincos da idade surgem nestes orientais, é porque os rostos se aproximam a galope do século.
Iria então repartir o apartamento com um centenário pejado de sabedoria. Cada palavra que proferisse seria uma pérola de um mistério, difícil de decifrar. Mas ele seria um aluno atento. Queria absorver cinco mil anos de história tão rápido quanto possível. Agradou-lhe tanto a ideia que colocou todos os dentes à mostra para que se notasse a sua boa disposição e foi o primeiro a romper o silêncio.
– Good evening, I am your new partner, may I say friend…My name is Gabriel.
– Boa noite. Chamo-me Lai Lin e pode falar comigo em Português.
– Ah, sabe Português? Em Macau é o primeiro chinês que encontro a falar Português, é fantástico…
– Em consideração pela minha provecta idade, compreendo que me chame jurássico.
– Perdão…
– Nem pense que lhe vou dar a mão, a menos que esteja mesmo necessitado. Por que havia de ser eu a transportar as malas para o seu quarto? A propósito é ao fundo, do lado direito. Não se engane por favor, pois embora Macau tenha uma certa fama, não costumo partilhar o leito com portugueses.
– Receio que esteja a haver um mal-entendido.
– Não me fiz compreendido? É porque está cá há pouco tempo. Não imagina o que muita gente diz de Macau.
– Até agora estive num hotel, onde havia poucas oportunidades para aprofundar conversas sobre a cidade. Porém imagino que tenha coisas boas e, como todas, algum mal.
– Macau tem muito sal, lá isso tem!
– Desculpe, sei que é chinês, e creio que local, quanto à terra, reconheço-lhe picante e sal, porém não será só maravilhas…
– Não, não tem muitas ilhas, apenas três: Macau, Taipa e Coloane. Sabe falar chinês?
– Aprendo há um mês.
– Ah, já sabe contar até três. Vai continuar?
– Se tiver paciência. Noto que está a desconversar. Sabe o que dizem: que esta terra é de perdição.
– É verdade, tem muita acção.
– Nos casinos?
– Hinos só nas Igrejas, e há imensas portuguesas.
– Não disse que era tudo mau nesta terra das maravilhas…
– Sei o que digo, não me ponho com fantasias. Aqui há gente de todas as idades e a grande maioria vive como deve ser.
– Queira desculpar, mas está-se a fazer tarde, vou deitar-me, pois aguarda-me amanhã um longo dia. Muito se trabalha nesta terra!
– O Gabriel está em guerra? Só se for consigo próprio. Teve um convite da nossa firma para vir até Macau, pagam-lhe pelo que faz e até lhe deram a possibilidade de repartir o apartamento com um dos funcionários mais antigos da firma. Quer melhor que isto?
– Não me estava a queixar, porém os chineses têm ritmos de trabalho constantes.
– Pode comer lagostas e lavagantes? Os chineses são fascinantes? Não é preciso exagerar. Gostamos de o ter cá, mas se utilizar grandes palavras, começamos a desconfiar.
– Perdoe-me a franqueza, o senhor ouve mal, por isso tem estado a trocar as minhas palavras.
– Tenho estado a revelar as suas palavras? Vá descansar, porque amanhã tem que se levantar cedo. Gosto de o receber cá em casa, tenho a certeza que ainda nos vamos divertir muito.
Gabriel procurou esboçar um sorriso, depois encaminhou-se lentamente para o quarto. Não estava assim tão certo que fosse fácil conviver com um surdo. De repente, foi assaltado por uma dúvida: Qual deles seria o surdo?
Ana Cristina Alves– Professora Convidada do Departamento de Português da Universidade de Macau, onde lecciona as disciplinas de Questões Culturais na Tradução do Chinês/Português e Português Avançado. Colabora na Revista de Cultura e tem vários trabalhos publicados, entre os quais a tese de Doutoramento em versão encurtada, A Mulher na China (2007) e A Sabedoria Chinesa (2005), sendo ainda co-autora com Wang uoying de Contos da Terra do Dragão (2000) e Mitos e Lendas da Terra do Dragão (2010).