O ÚLTIMO VOO DO CONSTELLATION F-BAZN
Na noite de 27 de Outubro de 1949, o Constellation F-BAZN, da Air France, despenhou-se no Monte Redondo (maciço do Pico da Vara) quando se preparava para aterrar em Santa Maria, no que seria uma escala técnica antes da segunda etapa do voo Paris-Nova Iorque.
Visto do centro da Europa, o acidente ganhou o dramatismo e o mistério das coisas que acontecem em lugares remotos, como o era uma ilha algures a meio do Atlântico, a que acrescia ainda a perplexidade sobre as eventuais causas do desastre. E se a emoção pública e mediática se associa ao facto de terem morrido os quarenta e oito ocupantes, a ela não é alheia, por outro lado, a celebridade de dois passageiros: Ginette Neveu, a famosa violinista francesa, e o também famoso pugilista Marcel Cerdan, que ia a Nova Iorque recuperar o título de campeão de pesos médios e desfrutar do aconchego da cantora Edite Piaff.
João de Melo já nos deixara em «O meu mundo não é deste reino» o relato do desastre do Constellation, na perspectiva de uma população surpreendida pelo estrondo e pelo fogo caído do céu e que vêm estilhaçar o silêncio de uma noite condenada à rotina de um tempo primordial. São páginas de uma narração apocalíptica em que as gentes do Rozário se deparam com os sinais do fim dos tempos e se aventuram nos caminhos e nas veredas do Pico da Vara para testemunharem a extensão da morte e o seu rosto, por entre o assombro e a comoção, que não impedem, todavia, a pilhagem, o saque das vítimas.
Em Dezembro de 2014, foi publicado em França o romance «Constellation», de Adrien Bosc, que tematiza precisamente o voo do avião da Air France. A viagem constitui, na verdade, o fio condutor da narração, desde os preparativos para ao embarque até ao despenhamento do avião e os desenvolvimentos posteriores, a recolha dos corpos e o seu repatriamento, e mesmo alguns equívocos relativos à identificação de vítimas (o caso de Ginette Neveu, por exemplo). Mas estes são elementos de (quase) directa referencialidade, «transcritos» por um discurso despojado e seco; a parte mais sugestiva do romance consistirá, seguramente, na reconstituição dos percursos dos ocupantes do avião (tripulação e passageiros), os caminhos que os conduziram até ao fatídico voo: os acasos, a conjugação de acontecimentos fortuitos da vida, episódios aleatórios que traziam em si o dedo imperceptível do destino e os fizeram encontrar-se todos no avião errado e no dia errado (da mesma forma que, em sentido inverso, outros que deviam embarcar acabaram por não fazê-lo, escapando à morte).
Apresentando esses «apontamentos biográficos» em alternância com o plano da viagem, Adrien Bosc «reconstrói» a dimensão humana e pessoal de quem tem/teve uma vida para lá de um bilhete de avião. E se l avion des stars transportava, de facto, outras estrelas que não apenas Ginette Neveu e Marcel Cerdan (o pintor Monvel e o empresário Kay Kamen, parceiro comercial dos Estúdios Disney, por exemplo), também acolhia no seu bojo algumas gentes miúdas que viam em Nova Iorque apenas o ponto de passagem para outros destinos onde as aguardava o sonho americano: os cinco pastores bascos que um dia regressariam dos Estados Unidos com as suas economias, ou Amélie Ringler, que uma carta chamara à América para tornar-se a única herdeira de uma madrinha que fugira de França nos anos 30 e enriquecera em Detroit.
«Entendre les morts, écrire leur légende minuscule et offrir à quarante-huit hommes et femmes, comme autant de constellations, vie et récit», define de modo sumário e excelente o projecto e o resultado deste romance, que envolve as vidas de cada um numa aura de fatalidade e desperta o sentimento de injustiça sempre inevitável perante o espectáculo trágico de uma felicidade ao alcance da mão e abruptamente roubada.
Não por acaso o livro de Adrien Bosc abre com uma epígrafe de Antonio Tabucchi, precisamente de Mulher de Porto Pim (de que outro poderia ser?). O livrinho italiano, cujo sucesso surpreendia o próprio autor, tornou-se, de facto, uma espécie de guia para a descoberta e a reinvenção literária dos Açores (veja-se Romana Petri ou Enrique Vila-Matas).
No caso de Adrien Bosc, a «viagem aos Açores» faz-se igualmente no rasto de Tabucchi, não apenas por essa epígrafe geral, mas também pelos tópicos ou motivos tabucchianos retomados por «Constellation», como o Peter Bar ou as «alminhas», que no romance francês se ajustam perfeitamente à nomeação do pequeno monumento que no Pico da Vara assinala o acidente de 1949 e pede um Pai Nosso e uma Avé Maria pela alma das vítimas. Por tudo isso e ainda pelo balanceamento entre ficção e facto, pela «inscrição autoral» no espaço exterior à ficção propriamente dita, com os elementos referenciais insulares trazidos ao texto como resultado de uma experiência própria, e também aqui (como em Tabucchi, aliás) não evitando algumas imprecisões factuais.
A forte dimensão literária de «Constellation» não se esgota, porém, no texto de Tabucchi, antes se concretiza e aprofunda nas epígrafes de cada capítulo, provenientes de fontes muito variadas, e nas citações convocadas no interior do discurso narrativo, como pequenos focos de luz que iluminam o sentido das vidas, lançam sobre a sua noite um clarão breve que, em último caso, se projecta ainda no texto autoral e faz dele o lugar de acolhimento de memórias de leitura, de sobreviventes de textos anteriores.
Urbano Bettencourt
2 de Fevereiro de 2015
OBSERVAÇÕES:
No «Diário dos Açores» de 12 de Abril de 1950, Fernando de Lima publicou uma crónica em que descrevia a romagem feita ao Monte Redondo para acompanhar Mme Salvatori, viúva de Jean Salvatori (piloto navegador do Constellation), que viera a S. Miguel para observar com os próprios olhos o local onde o marido perdera a vida (a crónica foi incluída no livro de Fernando de Lima, «Dez Contos e Outras Histórias», org. de Filomena Medeiros, Ponta Delgada, 2004).
Na sua crónica Fernando de Lima, retomando um artigo de J.P.Lacroix no jornal «Franc Tireur» insurgia-se contra o facto de a mediatização do desastre se concentrar na figura de Cerdan, esquecendo os restantes. O romance de Adrien Bosc vem, de algum modo, resgatar a memória e a vida dos «outros» que perderam a vida em S. Miguel.
O escritor Daniel de Sá escreveu um pequeno apontamento «musical» (em vários sentidos) intitulado «Um Stradivarius no Pico da Vara» (http://aspirinab.com/visita…/um-stradivarius-no-pico-da-vara) centrado no violino de Ginette Neveu, que uma lenda, conta Adrien Bosc, refere que era «arranhado» nos anos 50 por um doido de S. Miguel, antes de ter aterrado nos Estados Unidos e ser comprado a preço de ouro.
Mas eram dois os violinos de Ginette Neveu, como refere ainda Adrien Bosc. Mais de trinta anos após o acidente, uma voluta do violino Guadagnini, encontrada nas encostas do Monte Redondo, foi entregue em directo na televisão, a Étienne Vatelot, filho do violeiro a quem a artista o comprara pouco antes da viagem aos Estados Unidos. Tendo passado dos Açores ao Brasil, a voluta chegava finalmente às mãos de Étienne, que em 1949 devia acompanhar as actuações da violinista, mas marcara a viagem, de barco, para o dia 30 de Outubro.