Odisseia açoriana, ou Ítaca reencontrada
Há romances que demarcam para si um espaço tão profundo e firme que nunca mais ninguém – que o leia – poderá olhar esse referencial de geografia humana com os mesmos olhos, e muito menos sem rever todo o seu entendimento desse território, seja ele dos seus afectos pessoais e ancestrais, ou tão-só um ponto de luz – ou escuridão – na vastidão do mundo, na memória de quem o viu ou viveu. Não é o lugar que cria ou sequer define a arte, é a arte que o espelha numa luminosidade universal a quem olha em busca de si próprio, ou nesse mesmo lugar se enreda sem, até a esse momento, a consciência de como lá chegou, ou o acaso, o destino, que lá o fez nascer. Parecemos todos estranhos em terra estranha, desconhecemo-nos mutuamente, até que a grande arte junte os pedaços de que somos feitos, e os coloque no emaranhado a que chamamos sociedade, assemelhando-se àquela visão de conjunto perfeito e misteriosamente belo que temos ao subir a Serra do Cume, na Ilha Terceira, e olhar o xadrez de pasto e pedra – a natureza no seu estado primordial e a determinação humana em mexer com ela a seu favor. Arquipélago, o novo romance de Joel Neto, o próprio título significando logo à partida um conjunto de terras desconexas rodeadas de mar por todos os lados, não será facilmente ultrapassado entre nós na sua dimensão formalista e temática, na expansividade da sua narrativa, no inter-relacionamento das suas muitas personagens de várias gerações, no mistério tornado história plausível, no seu diálogo com a melhor parte da tradição literária açoriana modernista. Tanto nas epígrafes de certos capítulos como na própria prosa das suas primeiras páginas, Arquipélago presta essa homenagem a outros escritores, essa cortesia de quem está consciente das suas raízes intelectuais, da sua história, da sua pertença a uma comunidade de família e concidadãos, das suas influências, pacíficas ou clamando por respostas, ou até contestação – cita prosa e poesia de outros, relembra aos seus leitores as origens reias e reinventadas da sua própria obra. Resta agora dizer que este seu romance é nada menos do que uma espécie de súmula literária de tudo o que no género o antecedeu, olhando o passado e tentando perceber o presente para rasgar ou propor novas visões, revisões, de quem somos ou pensamos ser, e de como nos integramos no grande esquema de um novo mundo em construção. É a essencial, a inevitável “viagem para dentro”, o reencontro homérico, é o (nosso) livro de todos os regressos, após todas as partidas que o antecedem nas obras de alguns dos mais conhecidos ou canónicos autores açorianos a partir de meados do século passado.
A estrutura narrativa de Arquipélago é esse labirinto de tempos, personagens e cenas que eventualmente convergem numa só história, levando-nos até fim na busca e eventual confirmação de um só tema, apesar de um intrincado fio condutor que nos leva a prolongadas e inesperadas digressões, a sinuosas veredas, pessoais e colectivas, a reacções de uns e outros a catástrofes aqui transfiguradas em acontecimentos ainda na memória quase fotográfica de cada um deles. Da força das raízes não se livra o doutorando José Artur Drumonde, regressado de Lisboa à sua terra natal, a freguesia da Terra Chã, onde se depara com os mistérios do passado da sua gente, mortes por explicar, a ilha dolente ainda traumatizada por outras violências, uma vez mais, indelevelmente gravadas na alma de todos, fonte de verdades e mentiras da ilha, evidência de que por detrás de cada cara inocente ou falas sem nexo espreita também a capacidade de matar e amar, a humanidade atávica enquanto pretendendo a modernidade precária do mundo em que todos nós vivemos, aqui e além dos nossos enevoados horizontes ilhéus. No centro do romance está o momento mais catastrófico e traumatizante das ilhas para esta geração – o terramoto de 1 de Janeiro de 1980. Os mortos foram enterrados, mas os lares ficaram desfeitos, e mais ainda as vidas mergulhadas no medo e na incerteza, e sobretudo na sabedoria desperta que leva a questionar todo e qualquer conforto em crenças maiores. A ilha será invadida por trolhas estranhos que reerguem as casas, mas tudo o resto são como as manhãs do Outono, o frio por entre o nevoeiro, a ameaça constante de tudo e todos, o silêncio e a quietude da natureza, quase sempre interpretada como presságio da terra tremida ou explosiva. Arquipélago é um romance ritualístico, de choro e riso, e no qual os antigos serão revistos como homens ou mulheres de bem ou do mal, ora de vontades e acções livres, ora guiados pela ignorância, acreditando em temerosos castigos divinos, e escravidão social raramente questionada. A personagem de primeira referência é também o avô de José Artur, de nome José Guilherme Drumonde. À sua volta gira a felicidade, o bem-estar do seu clã, a casa por ele construída marcando sempre os pontos de partida, e anos mais tarde, já muito depois da sua morte, sobretudo as chegadas. No outro lado da memória e obsessão determinante do seu neto regressado à ilha em busca de respostas está a morte, nos dias após o sismo e envolta em mentiras, da menina e amiga de infância, Elisabete Dutra, de apelido Sarralha, nascida da pobreza e para a pobreza, nascida da violência e destinada a um sacrifício levado a cabo por gente à procura de aplacar deuses e demónios do seu pequeno mundo. Nunca uma ilha açoriana tinha sido transfigurada desta maneira, o realismo fantástico levando-nos a algo mais do que havia já acontecido noutras ficções nossas. Nunca uma casa-concha caída e recuperada em nome da continuidade geracional, escondendo segredos macabros tardiamente revelados, significou tanto nas nossas melhores páginas da literatura, aqui tão memorável, a reconfirmação de que a geografia vale “tanto quanto a história”. Arquipélago tem ainda uma estrutura policial que nos faz suspender a incredulidade, e mais ainda seguir um jogo de investigação e especulação contínua sobre a mítica de uma Atlântida, alimentada nos nossos dias também por supostas e diversas descobertas que atestam por toda ilha a presença de povos esquecidos, que estiveram ou por cá passaram muito antes dos portugueses. Se toda a literatura é um imaginado memorial sobre as origens das nossas vidas, o proverbial jogo de espelhos reflectindo todas as verdades contraditórias da História legitima esta audácia intelectual, e tenta responder ao que resposta, concludente, nunca teve, entre qualquer povo do planeta – de onde somos e que fazemos aqui?
O elenco de personagens de Arquipélago é extenso, e vem listado na sua abertura. Uma das epígrafes de capítulo traz uma citação de um dos mais conhecidos romances do americano Jonathan Franzen. Vejo aqui uma característica narrativa que me faz lembrar a prosa lapidar do autor de Correções e Liberdade – uma complexa trama de relacionamentos, incidentes, estados de alma, e em particular um mosaico comunitário que cobre todas as classes sociais, com especial atenção a figuras cuja originalidade e estilo de vida rural açoriano são-nos históricos, permanecem como referências de toda uma geração, hoje adulta, e até com experiência vivencial e cultural do mundo em toda a parte. Joel Neto sabe muito bem que o realismo literário está de volta, como sabe ainda mais que uma narrativa referenciada numa cultura de raiz católica e supersticiosa como a nossa não dispensa nem a sua magia nem a sua noção do sagrado e do fantástico. Representam, quase todas estas personagens, arquétipos muito nossos, desde o criador de gado ao taberneiro de freguesia, a mulheres servis ou contestatárias do seu lugar pré-destinado ou imposto pela tradição. São de imediato reconhecíveis, mas sem nunca em caso algum perderem a sua originalidade. O narrador faz o que a boa ficção tem de fazer – com descrições e observações precisas imprime na nossa mente toda uma personalidade e vida interior dos seus personagens mais relevantes, em que até o seu cão de estimação se torna inesquecível, Papillon, pois claro, cuja missão principal é ficar ou fugir da prisão na companhia do seu dono, assim como, já agora, faz com o velho e hidráulico Citroen, a que desde sempre lhe deram a alcunha de Boca de Sapo, carro herdado do avô. Nada disto é tão comum na nossa literatura como poderão pensar, antes teremos personagens ao serviço de ideias perecíveis ou ideologicamente motivadas, e raramente o contrário. Por outro lado, a sensualidade do lugar e das gentes é uma constante, a história de amor aqui outro ponto fulcral da narrativa. Luísa, divorciada, oriunda de Santa Maria, empresária turística e vivendo só com uma filha, inteligente e sensível a tudo que a rodeia, são-nos ambas inesquecíveis.
Por fim, diga-se que a narrativa começa no presente, e termina com um epílogo escrito em 2048 por André Gouveia Drumonde, filho do protagonista, e residente na casa e na freguesia ancestrais. Continuam todos a ser daqui, como são de toda a parte, ou de nenhures. O ciclo açoriano não se fechava com a morte das sucessivas gerações, perpetuava-se, a memória dos que nos seguem tão viva e actuante como a nossa, como a de todos os antepassados.
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