Dando expressão à divisão dos capítulos deste livro, o autor, nos seus textos de ficção, recria, de um modo realisticamente admirável, a vivência quotidiana americana dos açorianos, abrindo lugar à consciencialização da existência de uma nova cultura de raiz açoriana fortemente enformada pelo estilo de vida americano, que designou, no seu habitual estilo irónico, em 1983, por “L(Usa)” e, em 1987, por a “Décima Ilha”, neste último caso jogando com o mito nascido de uma vaga lenda açoriana, de que Vitorino Nemésio faz eco em Mau Tempo no Canal, da existência de uma outra ilha do arquipélago, a “décima”, reino de avantajada prosperidade e felicidade. Neste último volume de “L(USA)lândia”, Onésimo elucida ironicamente na primeira página: “A (L(Usa)lândia é uma porção de Portugal rodeada de América por todos os lados”. Assim, a “L(Usa)lândia” constitui-se como a “ilha” onde decorrem os contos da nova “sapateia” – “sapateia”, não já açoriana, mas americana. Nestes contos nasce um novo “herói” da literatura portuguesa: o “herói” açoriano, não já o baleeiro épico-popular de Vitorino Nemésio e Dias de Melo, mas o emigrante que “mourejando, ocupando os lugares mais baixos da escala social” , se vai lentamente integrando, acumulando algum capital, possuindo os Açores no coração e a América no raciocínio, consciencializando lucidamente que os seus filhos não se adaptariam já à rotina de vida genuinamente açoriana. É este o novo “herói” da ficção onesimiana, um herói anónimo, que o autor retrata nos seus contos-crónicas e em peças de teatro, como, por exemplo, Ah! Mònim dum Corisco , de 1991.
Assim, no que à ficção diz respeito, a singularidade da escrita de Onésimo face à totalidade da literatura portuguesa contemporânea, reside, para além do seu estilo concentradamente irónico, com paralelo apenas na ficção de Mário de Carvalho e Rui Zink, na descrição crítica e satírica da realidade social criada e designada pelo autor como “L(USA)lândia”, domínio literário açoriano-americano.
É, porém, necessário aprofundarmos o estatuto cultural da crónica e da ficção em Onésimo, já que ela possui uma singularidade portuguesa muito, muito específica. Constituem-se ambas como a outra face (ridente e optimista) do pensador rigoroso e escrupuloso nas teses defendidas e citações feitas.
Com efeito, todos os pensadores importantes são homens dualmente divididos, quando não pluralmente divididos. Faz parte da sua natureza mental afirmar e duvidar do afirmado, criar o novo e admirar o antigo, separando em conflitualidade o passado do presente, romper consensos e depois reinventá-los. Por isso, a condição de pensador é habitualmente trágica, que é o elemento próprio da divisão dual. Porém, paradoxalmente, Onésimo, exprimindo um novo e democrático espírito do arquipélago, faz da ironia humorística a impensável ponte entre as duas margens da natureza trágica, cujo conteúdo, no seu caso, se constitui como a ponte entre as duas margens de dois mundos geográficos (Europa – América), culturais (cultura açoriana e continental da década de 60 e cosmopolitismo universal americano a partir da década de 70) e teoréticos (filosofia e literatura portuguesas e filosofia da linguagem neo-pragmática anglo-saxónica) em que se divide a sua existência.
De facto, constata-se, pelo conteúdo da sua obra, que a divisão dos capítulos deste livro evidencia com muita clareza, ser Onésimo um homem dividido, do ponto de vista sentimental, entre a América da sua realização e o Portugal da sua formação, o laicismo profano e festivo da sua escrita e a memória do absoluto anteriano e enesiano da sua sensibilidade juvenil, entre o lastro da cultura portuguesa melancólica, séria, protocolar e preconceituosa, e o pragmatismo e igualitarismo americanos, e, do ponto de vista racional, entre a escrita académica dos seus trabalhos e a escrita jornalística por que intervém socialmente no presente da História; mas também, a um nível mais profundo, entre o projecto modernista iluminista europeu, de que defende a necessidade da sua definitiva consumação, e a concretização perversa deste pelo poderio imperial americano. Numa palavra, entre uma escrita intemporal, de terceira pessoa, teorética, racional, escrupulosamente rigorosa, e uma escrita sensível e sentimental, evidenciando uma prática existencial e testemunhante, esta dificilmente reduzida a elementos de sintaxe universal e abstracta do pensamento.
Se houve dois distintos Anteros (no lúcido dizer de António Sérgio e Joaquim de Carvalho), se Nemésio matou a filosofia crítica para fazer literatura (no significativo dizer de Tomás da Rosa) e se José Enes, mestre de Onésimo, matou a literatura no ano de 1964 para se dedicar à filosofia, todos ostentando um espírito trágico dual, Onésimo supera idêntico vazio existencial e ontológico através da ironia, não eliminando nenhuma das “margens” (a filosofia e a literatura), com ambas convivendo sem drama. A ironia, o motejo, a zombaria, o remoque, de que polvilha as suas crónicas, servem-lhe saudável e estilisticamente como ponte entre os dois mundos geográficos, culturais e teoréticos, isto é, o académico e o profano, o americano e o açoriano-português, o mundo nefelibata dos congressos de especialistas e o mundo temporalizado das redacções de jornais. Trágico Antero (na sábia visão de Eduardo Lourenço), trágico Teófilo Braga, sistematizador do absoluto em forma de filosofia positivista, trágico Nemésio em Mau Tempo no Canal, condenando Margarida à insignificância existencial, trágico Enes, corrector de um mundo tomista ontologicamente dual (o sensível e o intelectual, que pelo intuito intenta unificar); Onésimo, em compensação, quebrando a eterna mensagem trágico-melancólica por que os Açores se têm integrado no todo da cultura portuguesa, ostenta essencialmente uma postura irónica de cariz contextualista na reflexão e pragmatista na acção. Por isso, à obra de Onésimo escapa-lhe o estilo e o comportamento trágico como apropriação da realidade em ordem a um absoluto (Deus, Verdade, Bem, Belo, Ser…), substituindo-os pelo estilo irónico, mecanismo mental que multiplica a realidade em níveis hierárquicos, cada um com o seu estatuto, as suas regras, os seus fins – posição filosófica de Onésimo. O trágico exige o Tudo ou o Todo; o irónico sujeita-se à Parte, ao Grau. O trágico pensa-se em termos de destino, de Obra, de perfeição; o irónico em termos de vida existencial, sabendo-lhe toda a obra a imperfeição, porque temporalmente enraizada. O trágico pensa a História como um bloco uno; o irónico compara momentos da História, civilizações, a sua atitude é sempre comparatista, mesmo quando emite juízos meta-históricos – posição de Onésimo. Rápido, o trágico desdobra-se em fatalismo, determinismo, crença cega em uma transcendência (Deus, a Razão, a História, o Progresso, a Classe Operária…). Em Onésimo, afastado o elemento trágico, reina uma ironia natural que raramente se transcende em sátira intencional e muito menos em jocosidade (a sátira é, não raro, o malévolo da ironia, e o jocoso a sua graçola ingénua). Diferentemente, enquanto ponte entre os dois mundos de Onésimo, a ironia transfigura-se num humor benévolo, um humor que, relativizando os graus de realidade, erigindo o pragmatismo em conduta, promotor da concórdia, empurra pacificamente o mundo para a frente.
Não existe melhor exemplo da ironia como postura sentimental e racional de Onésimo que o remate da história narrada na crónica “Eu, Kofi Anão”: “ O David, por exemplo, ia para uma reunião pró-Israel. A Sahida ia também a outra. Pró-Árabe. Nenhum deles tinha carro. Dei boleia aos dois” (Livro-me do Desassossego. D
ia-crónicas, p. 45).
_____________________________
Do Autor MIGUEL REAL, escreveram:
1.Bárbara Guimarães, in Páginas Soltas.
Ensaísta, romancista, dramaturgo, Miguel Real transporta sempre os seus leitores para o coração de ideias, actos, obras e dilemas que determinaram a vida dos homens e das sociedades, e que são, ao fim e ao cabo, os que moldaram de alguma forma a nossa própria sociedade, tal como a conhecemos.»
2.Fernando Venâncio in revista Actual, em setembro de 2004
«Miguel Real sabe reconstituir ambientes, com o sumo mérito de nunca deixar a sua, evidente, erudição sobrepor-se a uma história que tem de ser daquele indivíduo»
Fonte: Read more: http://www.portaldaliteratura.com/autores.php?autor=466#ixzz1TbKh0at5