Onésimo Teotónio Almeida:
A Ilha L(USA)lândia – a Décima Ilha
(Sapa)teia Americana de Onésimo Teotónio Almeida evoca o título da recolha poética de Vitorino Nemésio Sapateia Açoreana ancorada no imaginário popular ilhéu. Por via da alusão intertextual o título de Onésimo chama de imediato a atenção do leitor para aquele mesmo imaginário, particularizado agora no «mundinho imenso da L(USA)lândia» – a décima ilha do arquipélago – «uma porção de Portugal rodeada de América por todos os lados». Esse «mundinho imenso é explicitado no pórtico da obra – «Em vez de Passaporte…». Tal como o passaporte é o objecto/documento cuja função é identificar o sujeito e o espaço de origem fora desse espaço, também as estórias desenroladas fora do espaço açoriano têm aqui a função de lhe conferir identidade própria caracterizando-o enquanto memória projectada no espaço americano. Mas o título de Onésimo não se esgota na evocação nemesiana. A dança açoriana sapateia conotada com situações eufóricas de festa, Festa Redonda, segundo Nemésio, ver-se-á neste título de Onésimo simultaneamente euforizada e disforizada pelo engenhoso processo parentético que a complexifica desdobrando-a em «Sapa» que remete para trabalho de sapa, tarefa dura de quem tem de desbravar um terreno, cumprir uma missão espinhosa e se vê enredado numa «teia» de dificuldades, num emaranhado de fios-problemas que forçosamente tem de desenredar. É notável a polissemia deste título pois que, para além da leitura da «teia» como «desconstrução» – desenredamento, possibilita ainda a sua leitura como «construção», montagem, ordenação fio a fio de um modo de vida por parte do imigrante que vem de fora para construir uma nova vida, em «trabalho de sapa» que o mesmo é dizer arduamente, com a disforia do cansaço de quem constrói a teia na América – a «Sapateia Quotidiana» – e com a euforia de quem dança, sapateia açoriana na festa do regresso endinheirado à ilha. No título (Sapa)teia Americana coexistem deste modo pelo menos duas estratégias de leitura que poderíamos metaforicamente (e alusivamente) designar como a estratégia da aranha que constrói a teia para caçar alimento/fortuna e que corresponde textualmente ao mundo sonhado pelo pequeno Adriano [do extraordinário conto O(s) Adriano(s)] e a estratégia da mosca que tenta desenredar a teia em trabalho de sapa, um pouco às cegas, tentando sobreviver. É este o retrato do imigrante recém-chegado – «o grinano», completamente «verde» em relação às manhas, às malhas da teia americana, aos costumes diferentes, à diferente percepção de tudo quanto de perto ou de longe se relaciona com a emancipação da mulher, e com o que erradamente interpreta como sinaléptica amorosa ou erótica como pode ver-se em «Vingança E(u)rótica» ou em «O Dever do Homem».
Da dualidade de perspectivas sobre o mundo, sobre os homens neste microcosmo enquistado no macrocosmo americano dá-nos conta o conto O(s) Adriano(s), obra-prima de construção ficcional, porquanto a este plural onomástico correspondem tantos Adrianos quantos aqueles que o conhecem, se bem que na sua diversidade sejam redutíveis a três perspectivas: a que Adriano tem de si próprio – uma perspectiva heteróclita já que é positivizada pela sua auto-estima, mas negativizada pela impossibilidade de negar as origens portuguesas; a perspectiva francamente positivizada compartilhada por Steve, pelo director do departamento de distribuição do Providence Journal, e pela professora; a perspectiva claramente negativizada do pai, do padre e da senhora Olinda Ferreira.
O narrador, ele próprio senhor da sua perspectiva sobre Adriano, revela comedidamente a sua simpatia pelo personagem no incipit do conto lendo-se já embrionariamente neste comedimento aquela sabedoria de mestre que sabe como diz Vítor Faria e Silva em «Ganimedes» que «a verdade são muitas, tantas quantas a potência do inumerável permitir enunciar». É esta a verdade que lemos no sábio processo de articulação das várias verdades que culminam com o esboço de nova versão que fica em suspenso no final do conto, a provar aquela potência do inumerável, mostrando a mais irrefutável das verdades desde Protágoras: o homem é a medida (humana) de todas as coisas. O homem julga em causa própria e por isso é mau juiz. Esta a sábia lição que a narrativa O(s) Adriano(s) nos traz sobre o relativismo do conhecimento e do acto de conhecer que nos faz lembrar o conto de José Rodrigues Miguéis «Arroz do Céu» onde se analisa também a problemática da imigração para a América e onde à semelhança da caverna de Platão, a verdade é apenas a sombra que nos é dado ver.
O espaço alienígeno da América torna-se aos olhos do imigrante simultaneamente Jerusalém celeste e Babilónia de perdição. Dividido entre duas línguas, duas culturas, dois tempos, dois espaços, o imigrante é forçado a inventar a sua décima ilha de mítica felicidade cujas raízes estão na terra-longe, mas cujas flores e frutos se colhem na América através das preciosas dolas cuja «árvore» não vinga para sua infelicidade em solo açoriano. Tudo é diferente, tudo é estranho: a língua, os costumes, o próprio dinheiro. Só por milagre natalício se encontrará um Pai Natal de «Postal de Boas-Festas» que console pais e filhos irmanados na mesma condição: «nã se chora mê rico pequene, nã se chora, queride!». Foi este Pai Natal que fez falta dois meses antes naquele «7 de Outubro no Longe» aos irmãos, tornados uma espécie de siameses pelo medo-pavor que sentem. Este primeiro dia de aulas e o consequente regresso a casa é também o primeiro fio da teia que as crianças terão de simultaneamente urdir e desembaraçar aprendendo a língua num autêntico corpo a corpo metonimizado no «molho de dois troncos num só, enfaixado em quatro braços» (p. 33). Este corpo a corpo com a escola, com a língua inglesa não é apenas o das crianças que ignoram o caminho para casa «a dois passos dali daquele passeio da Heart Street School» ignorando também a língua que (não) fala na tarjeta «walks home».
Porque a língua é a casa do ser (disse-o o poeta Hölderlin e repetiu-o o filósofo Heidegger) o imigrante, porque não conhece a língua, é um ser errante (de erro e de errância) à deriva inter-pátrias, inter-casas, inter-mundi(e)vidências. Como Sísifo o imigrante terá de carregar a pedra ladeira acima a caminho do «chápe» diariamente, inelutavelmente até à almejada «ritaia» como a Alda-«Luísa» que sobe, sobe que sobe a calçada, numa Lisboa ao longe a provar que os lisboas são afinal irmãos de pronúncia diferente. Como Tântalo sofrerá a sede das mulheres libertas que com ele se cruzam sem poder dessedentar-se. Como Orfeu encontrará na sua viola a música da sua amada ilha-Eurídice que se arriscará a perder definitivamente se olhar demasiadamente para trás. Por isso o regresso torna-se descida à furna do Hades como condição de recuperação temporária de Eurídice. Por isso o regresso será sempre em vão, porque acentua a sua falta de identidade como Onésimo mostrou também exemplarmente em Ah! Mònim dum Corisco!… em situação pitorescamente dramática sob a epiderme jocosa: «…a família do Jànim Rapoza vai às Festas do Santo Cristo». O conto «Torna Viagem» inserto em (Sapa)teia Americana, problematiza ainda o regresso dos imigrantes observado de um ângulo particularmente emocionado não só do ponto de vista da temática da imigração, mas também do ângulo da psicologia da adolescência. É imprescindível olhar de forma minudente para esta obra-prima do conto português. É o que tentaremos fazer em seguida.
A Ilha Catártica
O regresso do imigrante à terra-berço assume foros de libertação catártica no magnífico conto intitulado «Torna-Viagem». Nele são confrontadas duas gerações
– a do pai José Amaral e a de seu filho Luís – não em tradicional oposição, como é o caso de Adriano no contexto familiar, mas sim em perfeita sintonia relativamente àquela função catártica do regresso. José Amaral arrasta consigo um passado que lhe ferve na memória das humilhações que sofreu da parte do Senhor Francisquinho da Fazenda «marmelo patife onzeneiro pelintra aldrabão mestre da vilanagem» e do senhor doutor Sousa veterinário «incompetente ignorante desleixado arrogante». Repare-se que a caracterização de ambos é feita num contexto discursivo de terceira pessoa que habilmente se transmuta para uma primeira pessoa implícita naquela caracterização, simulando a oralidade na catadupa de epítetos justapostos sem vírgula, o que vem reforçar a ideia de emotividade catártica do dizer implícito de José Amaral. Quando chega ao leitor a razão da vingança já esta lhe chegara previamente pela via da emoção, garantindo-se por esta forma a sua empatia para com a personagem. E o que poderia ler-se como exibição na hora do regresso «bota lá aí mais uma rodada de bia, para esta gente toda que quem paga sou eu à conta de Deus!» (p. 134) é lido como grito de revolta, necessidade psicanalítica de ser finalmente respeitado. O discurso do narrador vem corroborar aquela necessidade monstrando o outro lado da alma, da vida imigrante, o lado escuro da lua que o sol das dolas ofusca mas não ilumina. É «o fogo de artifício a arrotar bombãos e roqueiras, mas roqueiras de lágrimas…» na dupla acepção das «lágrimas» do fogo de artifício e das lágrimas de amargura feitas nos penosos caminhos da imigração, lágrimas verdadeiras escondidas pelas «rodadas de bia» – verdadeiro-falso fogo de artifício de uma vida-verdade amarga no passado e no presente. Por isso a catarse de José Amaral é um círculo vicioso, teia que o trabalho de sapa enreda desenredando, e que o torna uma figura trágica, símbolo da alma imigrante, condenada à humilhação no passado, condenada à exibição no presente, condenada ao sofrimento no passado e no presente, desejando desesperadamente alcançar o «Eldorado» futuro. É esta a gente feliz com lágrimas que titulará o romance de João de Melo autor do iluminante prefácio a este volume de contos de Onésimo .
Luís, o filho de José Amaral representa o sucesso intelectual da segunda geração e correlatamente a sua vendetta catártica, a qual é também coroada de sucesso ao nível da narrativa. Luís teve a sorte de «cheirar os estudos», lendo-se já aqui a diferença de quem se eleva na vida não pelo cheiro de «rodadas de bia» nas mesas das tascas do regresso ou pelo cheiro das «dolas» remetidas em envelopes de «crismas» que causam mais inveja do que gratidão, mas se eleva pela escala de valores não sujeitos a flutuações da bolsa – os valores da escola, da universidade, do saber.
O regresso de Luís é, pois, diferente de outros regressos marcando ainda assim a sua diferença: uma emoção friamente calculada, paulatinamente orquestrada, inteligentemente executada. A vendetta de Luís não denota amargura mas orgulho ferido. O seu caso é um caso de amor. As contas que tem de ajustar têm juros demasiadamente altos para que o pobre gigante Adamastor possa pagá-los. A sua vingança não sabe a lágrimas que não verteu no passado, pois tem o sabor do sangue que lhe tingiu a bela bola loira sua amada, bem mais doce que os caramelos donde saiu o desejado «vinte e três». O Adamastor não vai agora ser punido pelo crime de furto, mas pelo crime bem mais gravoso de rapto. Rapto da amada, rapto do sonho, rapto da alegria breve da infância de Luís. É preciso que a vingança fermente na memória. É preciso saber esperar: «O Luís tinha lá o seu tempo próprio de ruminar a memória. Ao longo dos anos foi ajustando contas com a sua moral. Riscava da agenda à medida que as ia liquidando.». Luís não tem dúvida, tem espera metódica. Luís não tem «urgência da volta», pois aprendeu a saborear antecipadamente a vingança. A própria cena típica da exibição imigrante («Pagou em dólares e não quis troco») funciona aos olhos do leitor não como exibição, mas como benevolência de quem tem mais para quem tem menos, mas também como justo agradecimento de quem por mãos alheias recebe o objecto que irá servir-lhe de instrumento de vingança. A ilha parada no tempo, os horários sempre iguais não têm neste conto a glorificação dos espaços míticos, mas antes impende sobre eles o libelo acusatório de serem espaço-testemunha do crime que vai ser vingado.
A cena de aproximação do vingador e da vítima agora em posições trocadas, «como se quinze anos não tivessem acontecido de permeio», mostram a ilusão do Tempo. O leitor sabe que o tempo passou, isto é, passou o tempo dos gigantes que entretanto se transformaram em pigmeus. O pequeno Luís é agora grande a vários níveis: na estatura, na posição social, no poder de vingança, no saber desse poder que se revela no «andar determinado sobre a relva», privilégio de gigantes que o ex-Adamastor, agora velho professor de ginástica é obrigado a compartilhar com «aquele cavalheiro idoso de mais para aluno». Repare-se que «idoso de mais» funciona ironicamente, pois que se aplica a um homem muito novo, mas que demonstra a maturidade que nos evoca o título de Rebelo da Silva Ódio Velho Não Cansa. Ressalta do jovem Luís uma sabedoria – sagesse – que costuma vir com a idade e que funciona como um íman à distância infundindo respeito sobre o adversário que ignora sê-lo e por isso está em dupla desvantagem. O medo apodera-se dele ainda antes do confronto como nos é dito indirectamente, subtilmente: «(…) mas não resistiu a avagar o passo à medida que a distância entre os dois homens se encurtava em movimento frontal». A distância que se encurta é mais do que física, é implicitamente a distância social agora esbatida. O «movimento frontal» não é apenas o sentido dos passos de ambos é também o movimento – atitude de frontalidade de Luís, que corajosamente afronta o gigante, agora pigmeu sem o saber. É ainda a vingança presente da afronta passada mas que não passou. E a afronta-desforra-vendetta de Luís é igualmente física e psicológica, atingindo o outro no cerne da questão. O desfecho é uma obra-prima de ironia fina, de premeditação e de sentido de oportunidade. O Adamastor não passa de um rochedo pedregoso, voz que clama e já não assusta os mareantes de torna-viagem e nunca será um homem.
Luís é Gama passando o cabo, David atingindo Golias e Ulisses enganando o seu Polifemo insular. Luís é o sábio urdidor das verdadeiras vinganças sobre os falsos poderosos das ilhas. Luís, porque «cheirou os estudos», sabe que o verdadeiro poder é o saber. Onésimo também o sabe e mostrou-o, arquitectou-o na teia labiríntica deste extraordinário livro – espaço imigrante – de teias-tormentas transformado em cabo da boa esperança da nossa literatura, (a)ventura de um sentir português pelo mundo repartido.
Teresa Martins Marques
Teresa Martins Marques (n.1950) é investigadora integrada no Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Doutoramento em Estudos de Literatura e de Cultura, na especialidade de Estudos Portugueses, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2011) com a tese: «Clave de Sol – Chave de Sombra : Memória e Inquietude em David Mourão-Ferreira». Mestrado em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1992) com a tese «O Imagináriode Lisboa na Ficção Narrativa de José Jodrigues Miguéis»;Licenciatura em Filologia Românica, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1975).
Integrou a equipa do Instituto de Lexicologia e Lexic
ografia da Academia das Ciências de Lisboa entre 1992 e 1995. Foi responsável pela organização do espólio de David Mourão-Ferreira na Fundação Calouste Gulbenkian, entre 1997 e 1999. Dirigiu a edição das Obras Completas de José Rodrigues Miguéis entre 1994-1996, assinando os respectivos prefácios. Autora de inúmeros verbetes em dicionários e enciclopédias. Presença destacada em eventos científicos e literários em Portugal e no estrangeiro e tem abundante colaboração em jornais e revistas especializadas no País e estrangeiras. É membro efectivo do Pen Club Português; da Associação Portuguesa de Críticos Literários (membro do conselho fiscal) ; integra a direcção da Associação Portuguesa de Escritores, desde 2008.
Produção Literária: Si On Parle du Silence de la Mer – 1985. (Sobre a novela de Vercors, Le Silence de la Mer.) O Eu em Régio: A Dicotomia de Logos e Eros. Prémio de Ensaio José Régio / 1989, atribuído sob pseudónimo – 1ª edição em 1993. 2ª edição 1994. O Imaginário de Lisboa na Ficção Narrativa de José Rodrigues Miguéis, 1ª edição com prefácio de David Mourão-Ferreira, 1994, 2ª edição-1996, 3ª edição – 1997. Leituras Poliédricas – 1ª edição 1996, 2ª edição, refundida e aumentada com prefácio de Maria Lúcia Lepecki, 2002. Antologias Salut, France 2000 (8 volumes (1989- 1992). Ficção : Carioca de Café (conto)- Câmara Municipal de Viana do Castelo, 2009. A Mulher que Venceu Don Juan (romance) – Âncora Editora , 2013. Mais de 60 Prefácios. Colaboração em livros colectivos (selecção dos principais): Ensaios Críticos sobre José Régio, Porto, 1994; Trinta Anos de José Régio Vila do Conde, 1999; Letras, Sinais para David Mourão-Ferreira, Osório Mateus e Margarida Vieira Mendes, Lisboa,1999; José Rodrigues Miguéis – Uma Vida em Papéis Repartida, Lisboa, 2001; Catálogo da Exposição Comemorativa do Centenário de José Rodrigues Miguéis, Lisboa, 2001; Portugal e o Outro: Textos de Hermenêutica Intercultural, Aveiro, 2005; Jorge de Sena: Ressonâncias e Cinquenta Poemas , Rio de Janeiro, 2006; Conto Português – Séculos XIX-XXI -volume 1 (2006) e volume 2, Porto, 2009; Matraga (Universidade Estadual do Rio de Janeiro): «O Espólio de David Mourão-Ferreira» Rio de Janeiro, 2007; Livro de Homenagem a David Mourão-Ferreira, Porto, 2008; Literatura e Cidadania no século XX, Lisboa, 2010; Era uma vez o seu Tempo – Homenagem póstuma a Fernando Aires, Braga, 2011. As Duas Margens do Texto» in Júlio Machado Vaz, Aqui entre Nós, Lisboa, 2011.
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