Muitas imagens de grande e antiga veneração estão associadas a alguma lenda que procura explicar-lhes a origem desconhecida. Uma das mais comuns é a de terem sido encontradas no mar, como a do Senhor de Matosinhos ou o Santo Cristo da Praia do Almoxarife, no Faial.
É possível que a frequência deste tema seja uma espécie de ressonância de achados reais. Como os provenientes de naufrágios ou do combate protestante ao culto das imagens. E havia mesmo quem tivesse o costume de também atirar ao mar alguma imagem sagrada, mas por respeito, para não ter de a destruir.
Segundo a versão mais repetida, a imagem do Senhor Santo Cristo teria sido oferecida, pelo Papa Paulo III, a duas jovens, Petronilha da Mota e Isabel Afonso, que foram a Roma pedir autorização para fundarem um convento na Caloura, em Água de Pau.
Uma outra história, claramente lendária, harmoniza esta com a dos achados no mar. O barco onde vinha a imagem teria naufragado, acabando aquela por dar à costa no sítio de Vale de Cabaços, na Caloura, onde seria construído o convento.
Pondo de parte o que é sem dúvida um relato lendário, pense-se um pouco na hipótese das duas jovens viajantes. A este respeito conta Frei José Clemente o seguinte: Da sua primeira origem descobrimos alguma notícia nas nossas memórias, as quais testemunham que, indo a Roma duas Religiosas para impetrar Bula Pontifícia da erecção do antigo Mosteiro, o Vigário de Cristo, que então governava a Igreja, movido das suas virtudes e santos exemplos, não só lhes concedera a Bula, mas também as enriquecera com o precioso donativo desta santa Imagem.
No entanto, Gaspar Frutuoso, que ao longo de várias páginas conta em pormenor todas as peripécias da fundação daquele antigo Mosteiro, não faz qualquer alusão à ida das duas jovens a Roma. E, quanto à bula pontifícia, diz apenas: …o Capitão da terra, Rui Gonçalves da Câmara, movido por sua devoção e bom zelo, tomou cargo daquela casa de novas religiosas e foi seu padroeiro, mandando a Roma por bula para que fosse convento e mosteiro com seus privilégios, e que ele e sua mulher fossem padroeiros dele; e logo se moveu com mulher e casa e foi assentar junto da dita ermida de Vale de Cabaços. (A ermida é a de Nossa Senhora da Conceição, onde viveram as religiosas até à construção do convento anexo, com ampliação da ermida, tendo ficado a servir de sacristia a parte antiga.)
Ora aquela expressão mandando a Roma por bula não obriga a concluir que fosse alguém em pessoa de S. Miguel ao Vaticano, podendo referir-se a algum correio apenas. E muito menos será fácil imaginar que o Capitão se atreveria a enviar duas donzelas numa viagem tão longa e perigosa, nem que as jovens se arriscassem a ela e seus pais o consentissem. As viagens por mar eram tão temidas que o Beato João Baptista Machado, a exemplo de tantos outros navegantes, antes de partir para Lisboa em 1597 fez testamento que justificava assim: por estar de partida para a Cidade de Lisboa, e por recear os perigos de mar: É certo que Isabel Afonso, que depois da profissão religiosa se chamou Maria dos Anjos, já tinha experiência de viajar pelo mar. Natural do Minho, fugira a um casamento que não queria por ter uma forte vocação para a vida conventual. Mas valera-se da companhia de um homem honesto, natural de S. Miguel, que aqui vinha casar uma sobrinha. E a viagem de um porto do Reino até aos Açores não tinha qualquer comparação com uma ida a Roma, nem veio ela encontrar um povo que falasse uma língua diferente nem nenhuma cidade tão estranha e grande como aquela. E foi em casa de Jorge da Mota que ela viria a conhecer a futura companheira da aventura espiritual, que tomaria o nome de Maria de Jesus.
A própria proveniência da imagem merece sérias reservas. Segundo a tradição, de que o padre José Clemente se vale, ela teria sido trazida para o convento da Esperança pelas religiosas que da Caloura passaram a Ponta Delgada. O mosteiro de Vale Cabaços começara a ser abandonado quando os piratas se tornaram numa séria ameaça para a segurança das monjas. Até às primeiras décadas do século XVI as ilhas estavam naturalmente defendidas deste tipo de ataques, mas o desenvolvimento das artes náuticas pô-las ao alcance de qualquer cobiça mais atrevida. Foi assim que parte das religiosas se mudou para o convento de Santo André, em Vila Franca do Campo, e as restantes, pouco tempo mais tarde, para o da Esperança. Segundo Gaspar Frutuoso, esta mudança terá acontecido num Domingo de Pascoela, em 23 de Abril de 1540, enquanto que o padre José Clemente e Ernesto do Canto apontam a data de 1541. Têm razão certamente estes últimos, mas não provavelmente quanto ao dia, tal como Gaspar Frutuoso a não terá. Porque o Domingo de Pascoela em 1541 foi no dia 24 de Abril. E não pode ter sido em 1540, se de facto a mudança se deu naquele Domingo, porque a Pascoela nesse ano foi a quatro de Abril.
No convento de Ponta Delgada, para onde teria sido levada a imagem, esta acabou abandonada em lugar pouco digno. Ora a este respeito convém fazer uma honesta interrogação. Será muito credível que as freiras tenham como que desprezado uma oferta do mais alto representante de Cristo na Terra? Ainda para mais tratando-se de uma imagem sagrada, das mais belas sem dúvida que nesse tempo haveria nos Açores, e que ainda hoje se destaca por essa beleza suave e triste.
É possível que a imagem tenha estado na Caloura. É até possível que tenha vindo de Roma. Mas parece pouco provável que no convento da Esperançase perdesse ou desprezasse a memória dessa origem.
In: Peregrinos do Senhor Santo Cristo,Ed.Paulus,Lisboa,2009