Originalidade de ESTILO e a impecável ESCRITA
de Urbano Bettencourt
**
Lélia Pereira Nunes
A editora Companhia das Ilhas anuncia para o mês de Maio a saída de mais um livro do escritor Urbano Bettencourt tendo por título :“outros nomes outras guerras”. Trata-se de breve antologia, que apresenta uma seleção de seus livros de poemas desde Raiz de Mágoa (1972), até o África frente e verso (2012). Inclui ainda uma recolha de quatro ou cinco inéditos.
Assim, quando a Primavera chegar e as Ilhas todas se cobrirem suavemente com suas flores exemplares, abundantes de beleza e cores como a Hortênsia famosa a demarcar caminhos e campos num lindo colar de pedras azuis, a Conteira amarela doce e perfumada e as Azáleas em tons de lilás a florir em profusão, sairá também o novo livro de Urbano Bettencourt, este escritor açoriano da Piedade do Pico que, sem qualquer concessão, ocupa um dos mais importantes espaços da Literatura Portuguesa contemporânea e, reconhecidamente, em outros espaços literários para além das fronteiras geográficas. No entanto, alargado seu horizonte não se distancia do torrão natal, na Ilha do Pico, dos seus afetos e memórias da Piedade e, também, de São Roque, Santo Amaro ou das pedras negras do Calhau. Lugares que um dia eu, segundo o próprio escreveu em 1995, “ atravessei o Atlântico para saber como é que nós nos temos perdido tanto e dispersado, à força de nos querermos agarrar a uns penedos atlânticos instáveis e fugazes”. Não sei se descobri o que ele sugeria nesta dedicatória assinada no seu O Gosto das Palavras II (1995) que afirma ser “um livrinho de ensaios e leituras afetivas” e que, de cara, chamei de “catecismo” pois me preparou para a maior comunhão da minha vida ao iniciar a viagem “para dentro” em descobertas infinitas na compreensão do olhar e do sentido de pertença a um espaço historial comum. Acredito até que já carregava nas veias uma certa inquietação insular por viver numa ilha ao sentir as tensões do cerco ilhéu ante o abraço aberto do Mundo ou entre o cárcere e o infinito, no poetar de J.Martins Garcia.
Devo-lhe muito do meu caminhar por essa atlanticidade literária que, no bailar das palavras, fui descobrindo e me apaixonando por este mundo de nove ilhas, que o mar encasula e liberta. Deslumbrei autores e suas obras, na expressão poética e ficcional da realidade ilhoa, um desfile sem fim de nomes ícones de uma literatura açoriana, vozes de diferentes histórias, pensamentos e gerações que Urbano Bettencourt tem dado a conhecer de forma absoluta e persistente.
Urbano Bettencourt é uma personalidade singular como professor circunspecto no exercício do magistério ou na postura do crítico literário sempre pronto a intervir, seja para aplaudir ou para negativar, impaciente com a mediocridade intelectual à superfície. Ao mesmo tempo, personifica o admirável escritor – poeta e cronista e, nesta condição, se esbalda numa deliciosa ironia, de um humor cativante e de uma malícia muitas vezes maquiada na linguagem refinada que surpreende como nos versos pícaros do poema Paisagem ante o fascinante Pico nevado: “ Um seio destes, tão perfeito/ e vasto,/ faz-se à medida do olhar guloso/e nada casto/de São Jorge,o santo de espada em riste”, uma definição aparentemente insuspeita de São Jorge, a ilha de cabelos verdes de corpo alto na poética de Carlos Faria.
Assim, de um lado, está o acadêmico, o professor de Literaturas – Portuguesa, Africanas de Expressão Portuguesa e Literatura Açoriana – da Universidade dos Açores e, também o crítico literário, o ensaísta, dono de um texto rigoroso, limpo e íntegro, numa posição de total frontalidade e de respeito ao criador e à criatura, a diversidade poética e as diferentes formas de expressão. Do outro, está o autor de ficção, de uma narrativa saborosa, vibrante, bem urdida, construída numa linguagem rica na sátira elegante, a falar de vivências, dos lugares, no descortinar da sua memória e do mundo-ilha. Está o poeta consistente, original e coerente nos seus pensamentos e no dúplice olhar marcado pelo viver insular. A poesia de Urbano Bettencourt, de singular mundividência, nos remete a distanciamentos ou a desejável aproximação, em intimidade com as Ilhas numa viagem para dentro de si e da terra – “da ilha e para ilha” (e para além). Produção literária profícua com marcas de intensa açorianidade que cabe bem adjetivar, dada a sua densidade e o estilo ímpar. Nos ensaios maiúsculos, na crítica literária corajosa, na prosa poética e mesmo na poesia, a questão da autenticidade da literatura açoriana está omnipresente em fortes e sentidas reflexões verbalizadas ou, sutilmente insinuadas.
Embora, não conheça o seu mais recente livro “outros nomes, outras guerras”, tenho a convicção que estamos diante de uma antologia de poemas onde a escrita se revela na sua essencialidade, contida é verdade, porém, a dizer-nos muito. Um jeito de escrever que traz a marca inconfundível, o sinal identitário de seu labor poético e o gosto das palavras. E que gosto! Poucas palavras, traços fortes e muita expressão. Esta é a característica da arte literária de Urbano Bettencourt – o de escrever o mais estritamente necessário e dizer tudo por inteiro, com o inegável talento e a competência de numa única frase criar uma narrativa completa sem floreios. Obras de poesia, narrativa e ensaios que são referenciais para quem ama a literatura e onde o leitor se identifica com o olhar do Autor.
Que paisagem apagarás (2010) e Africa Frente e Verso (2012),chegaram-nos como uma lufada de vento de verão, ora manso, suave, ora forte furioso a vasculhar tudo. Brisas ou ventanias do destino foi desta maneira que percebi a intensidade de seus dois últimos livros.
Em Que paisagem apagarás a suavidade de uma coletânea de textos de todo significante, prenhes de sentimentos no recriar percursos reais e imaginários e no alçar pontes por outras fronteiras, fortalecendo elos, aproximando realidades ou até saboreando o imprevisível chá da imaginação. A conversa aparentemente hilária, mas que deixa antever a fraternidade estendida dos pontos luminosos insulares da Macaronesia, corredores de mão dupla de culturas, histórias e de angústias compartidas no criativo diálogo entre Urbano de Sancho sobre “Las identidades fugaces” com um certo Juan Carlos Bettencourt das Canárias. É um livro delicioso como a brisa suave que nos afaga com sua prosa límpida ponteada de humor e muito leve no fluir compondo uma unidade paisagística exuberante que não se pode apagar. Abro um aparte, para citar a incrível secção“Breves, brevíssimas e (des)aforismos” assinada por um tal Ernesto Gregório e que Urbano Bettencourt passa a palavra, dando respostas com uma bem sacada e divertida sátira.
Que dizer de Africa frente e verso ? É o um vento forte que mexe com todo o sentir de uma geração, mesmo daqueles que não machucaram a carne e não choraram a guerra colonial. Do conteúdo e da capa (do pintor Urbano) meu olhar paira sobre uma África que é coração a pulsar, a gritar por liberdade e dignidade e, o conflito dos que, em nome da Pátria distante, defenderam a posse da terra e da gente colonizada. No verso,o coração ferido nas entranhas. Mais uma vez, a escrita de Urbano Bettencourt é de intervenção de respeito à condição humana que fez emergir nas águas cálidas do rio manchado de sangue e dos seculares embondeiros testemunhas de sua escrita na Guiné Bissau (1972-74) que a pena do poeta documenta na poesia e na prosa poética e as trouxe no seu regresso, como íntimo cheiro de África e, também, tatuado n`alma o amor pela terra morena que neste livro bendiz, esbraveja e chora: “[&hel
lip;] porque escrevo fogo/ e não resisto à fúria dos olhos das lanças/ dos laços/ em que se inscreve um país pisado/ lilás/violado em cada noite pelas bombas […]” (em porque escrevo raiva, p.18). Está patente no conjunto dos poemas e dos textos sobre a memória dos anos do flagelo da guerra e da violência, vividos por Urbano Bettencourt e por companheiros de farda, na visão da morte descrita no antológico texto Noite que, agora (re)publicado, fortalece a agudeza de seu olhar sobre uma realidade de 40 anos atrás e ainda muito presente.
Na nota de abertura “Voltando atrás” do África frente e verso, Urbano Bettencourt esclarece que estes os poemas e textos são posteriores ao seu primeiro livro “Raiz de Mágoa”, publicado na primavera de 1972. Será que teremos que aguardar uma nova Primavera para vê-lo (re)editado?
Nesta Primavera, em tom lilás das azáleas, brinda-nos Urbano Bettencourt com “outros nomes outras guerras” no seu estilo original e mitológico.
Florianópolis,19 de março de 2013
_________________________________
(*) Foto sessão https://www.facebook.com/urbano.bettencourt