Os Açores Na Modernidade
Permitam-me antes de mais e seja-me desculpado começar por uma citação inserida num pequeno texto que abre logo na primeira página esta tardia reedição de Açores, Açorianos, Açorianidade: Um Espaço Cultural, de Onésimo Teotónio Almeida, acabada de sair em Angra do Heroísmo: “A presente reedição foi submetida a concurso no programa de apoio à edição da Direcção Regional da Cultura e recebeu um subsídio que não chega para cobrir um terço dos custos. Não podendo o IAC suportar a totalidade do restante, optei por investir também, viabilizando a edição, calculando que, se continuasse a pagar fotocópias da primeira edição para satisfazer os pedidos que ao longo dos tempos me vão chegando, acabaria por gastar o mesmo”. Nem o humor nem a boa disposição do autor poderão nunca esconder o estado da “cultura” no nosso arquipélago, mesmo que este sucedido não seja da responsabilidade dos actuais dirigentes das questões aqui em causa. Que um livro tão fundamental ao “movimento” cultural e literário nos Açores durante as últimas três décadas, que tanta ira e silêncio estratégico provocou entre nós, encontrou a resposta acima relatada poderão agora imaginar a sorte dos que, por conta e força próprias, escrevem e definem nada menos do que criatividade identitária do nosso povo num dos períodos mais críticos da sua história moderna. Sobre o assunto não direi nem mais uma palavra — não serve de nada, e atenta contra a dignidade intelectual de nós todos.
Creio que as palavras de acima só por si já situam Açores, Açorianos, Açorianidade no centro do nosso cânone ensaístico referente às múltiplas facetas da nossa cultura, muito especialmente as suas componentes erudita e literária. Publicado originalmente em 1989 em Ponta Delgada, o seu impacto foi imediato e dava então continuidade ao debate que muito mais cedo havia sido iniciado entre nós, particularmente com o lançamento da revista A Memória da Água-Viva (Urbano Bettencourt e José Henrique Santos Barros, a partir de Lisboa no fim dos anos 70), e pelas colectâneas de ensaios do próprio Onésimo T. Almeida, A Questão da Literatura Açoriana (1983) e Da Literatura Açoriana — Subsídios Para Um Balanço (1986). O presente volume mantém toda a escrita original, mais um prefácio contextualizando o que desde então aconteceu entre nós no campo da literatura açoriana, desde outros livros publicados sobre mesma temática e encontros literários que aconteceriam um pouco toda a parte (nas ilhas, em Lisboa, nos Estados Unidos e no Brasil) aos suplementos literários que se mantiveram activos até há poucos anos em Angra do Heroísmo e Ponta Delgada. Acrescente-se, desde já, que as supostas polémicas em volta de todas estas questões culturais e literárias foram sempre muito desequilibradas: até hoje nem um único ensaio teoricamente competente foi publicado a demonstrar o contrário do que se defendia e defende — que a história e geografia tinham necessariamente criado nos Açores especificidades culturais e linguísticas de tal ordem que, nunca nos separando da mãe-pátria, acabariam naturalmente por ser expressas numa arte mais ou menos autónoma sem deixar de permanecer integrada no cânone-matriz nacional, no tronco comum das nossas origens. O permanecermos, quase todos, à margem das antologias nacionais (assunto que Onésimo T. Almeida não deixa de parte nestas suas páginas) nada quer dizer para além da persistente ignorância no outro lado do mar tal como acontece entre muitos intelectuais dentro do próprio a arquipélago, estes sofrendo de complexos de inferioridade étnico-periférica, cuja cura vai necessitar muito mais do que a leitura que eles, de qualquer modo, raramente ou mesmo nunca fazem da nossa melhor literatura. Só que nem os escritores das ilhas residentes no Continente, os que publicaram ou publicam em grandes editoras nacionais, se livram de alguns outros daqueles lados, os poucos que admitem nos conhecer, lhes chamarem nomes para eles detestáveis, como, (imaginem!) “escritor açoriano” e os seus livros “literatura açoriana”. Exclua-se aqui, num gesto de pura justiça, o nosso Prémio Nobel, José Saramago, que falava de “literatura açoriana” com a maior naturalidade, curiosidade e respeito, tendo enviado a Onésimo T. Almeida um breve texto sobre a questão agora integralmente citado na nota de abertura do presente volume.
Açores, Açorianos, Açorianidade deverá permanecer o principal ponto de partida para quem, em qualquer parte, se interessa pelas questões açorianas em geral, principalmente pela nossa modernidade literária iniciada por gerações ainda mais recuadas mas redefinida ou reinterpretada a partir da Geração Glacial de Angra do Heroísmo até aos nossos dias. Enquanto uns poucos entre nós se debatem com velhos conceitos e sobretudo preconceitos, a literatura açoriana tem sido objecto de estudo académico ao mais alto nível um pouco por toda a parte, menos no seu espaço natal. As ironias culturais de um povo acontecem de modos diversos, e esta é uma ironia nossa, já com pouca importância cultural ou literária. Chamem ao seu legado intelectual e artístico o que muito bem quiserem, mas um mínimo de pudor e seriedade deveriam evitar que se falasse ou “julgasse” o que não se conhece, e nunca se conheceu. No entanto, e como reafirma Onésimo T. Almeida num segundo prefácio à presente edição, muito mudou entre nós, e o tempo vem colocando as coisas e os pensamentos no seu devido lugar.
“Entretanto, operou-se — resume o autor num dos balanços que faz destes últimos anos quanto às questões culturais e literárias outrora polémicas — também uma institucionalização da cultura açoriana no discurso oficial e na Universidade: a realidade da personalidade cultural insular e a sua expressão literária e artística em geral passaram a quase não ser contestadas e são regular e sistematicamente afirmadas e reafirmadas… A literatura açoriana teve e tem um papel no fortalecimento da identidade açoriana e isso, só por si, é dizer que ela valeu e vale alguma coisa. Essa longa tradição prossegue. A literatura pode não aumentar a competitividade económica insular, no entanto é, sem dúvida, uma mais-valia em qualquer cultura, e a nossa prolonga-se numa tradição herdada de longe, e que tem deixado marcas notáveis na história das letras portuguesas”.
Açores, Açorianos, Açorianidade junta, assim, a teorização da cultura e literatura açorianas a outros textos fundamentais que nos inserem no espaço nacional e até internacional às questões da identidade ou identidades e as suas dinâmicas através dos tempos ou, como no nosso caso, em momentos políticos de grande tensão como ao que se seguiu entre nós logo após o 25 de Abril de 1974. Aliás, esta segunda edição, para além de continuar a responder aos que negariam a existência da nossa, uma vez mais, longa tradição literária pela fundamentação político-ideológica que o movimento independentista eventualmente poderia fazer em defesa das suas teses, reafirma ainda com mais força o facto de que a maioria dos fazedores da nossa literatura se terem posicionado claramente contra qualquer tentativa separatista, e levando agora o seu autor a incluir muito justamente um artigo publicado em 1991 em defesa do Dr. José de Almeida quando este enfrentou um tribunal pelo simples “crime” de defender a independência da sua terra, relembrando a todos que a democracia tem de comportar no seu seio o direito a todas as posições políticas, inclusive a defesa da independência de qualquer parcela nacional. Por outras palavras, a teorização séria de uma cultura ou de uma literatura não pode levar em conta a que conclusões chegarão outros, e muito menos as armas que escolhem para avançar com os seus projectos. A portugalidade e a açorianidade, questões qu
e Onésimo T. Almeida tem trabalhado ao longo dos anos, não significam de modo algum conceitos opostos, estando o autor muito longe de se juntar aos que tudo isto entendem diferentemente.
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Onésimo Teotónio Almeida, Açores, Açorianos, Açorianidade: Um Espaço Cultural (2ª edição), Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, 2011.
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Vamberto Freitas. Crítico literário, ensaísta.
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