Há trinta e tantos anos (ena, que já falo como os velhos!) achava-me eu no papel de jornalista a fazer perguntas do tipo que se fazem nesta quadra para o jornal Notícias de Setúbal, onde trabalhava nas horas que me sobravam das idas à universidade. Tinha que ajudar a pagar a renda da casa (era baixíssima – para mais, dividida por seis – mas também o que se ganhava até moralmente era baixo), já que a comida nunca eu soube bem como nos aparecia. Estava-se nos fins da ditadura, em plena Primavera marcelista, e gozava-se já de umas leves liberdades. Valia-nos isso. Não suspeitávamos sequer que a dita estava a expirar, mas ao menos havia no ar sinais da caquexia do regime e uns certos atrevimentos de expressão chegavam mesmo a ser impunemente tolerados. Ao preparar o número da passagem do ano, telefonei a um deputado do partido único, a Acção Nacional Popular, a perguntar-lhe quais as suas aspirações para o novo ano de 1971. Respondeu-me: “Pão mais farto para toda a gente”. Aticei-o: O quê?! O senhor deputado disse: “Pau mais forte para toda a gente?”
Nesse tempo, o nosso maior desejo colectivo era a liberdade política. Hoje, que a temos no Ocidente quanta se queira, as preocupações começam a ser outras. A segurança é agora uma das principais. Aqui nos States, ela deu a vitória a George W. Bush. No entanto, como por ironia, eu volto a pedir ainda hoje o que então pedia o deputado da Acção Nacional Popular, ex-União Nacional: “Pão mais farto para toda a gente”. Se há um fenómeno preocupante na sociedade americana é a crescente desigualdade sócio-económica entre as classes. Os Estados Unidos são gradualmente menos a sociedade igualitária do passado. Cada vez mais o fosso se alarga entre a camada de cima e a de baixo da sua pirâmide social. Cá no meu entender, isso traz mais instabilidade do que o terrorismo. George Bush tem diferentes convicções e identifica as raízes do mal noutros lados. À escala mundial, porém, o problema é incomparavelmente pior. E sem sinais de melhoria.
Para estas bandas, portanto, os meus votos são de que se acorde a tempo de se pôr cobro a essa tendência crescente, portadora de consequências graves para o tipo de sociedade que os Estados Unidos sempre ambicionaram ser. Para aí, para os meus patrícios que, após a Primavera marcelista, passaram pelo maior surto de melhoria de vida da história portuguesa, com naus chegando da Índia europeia carregadas de bombons, os votos são de que se lembrem de que as especiarias da India um dia estancaram e por isso se precavenham, de modo a não regressarem às velhas tradições de desequilíbrio social a que na pátria nos habituámos durante séculos.
* * *
Quanto ao segundo pedido, sera importante começar pelo próprio pedido, que me chegou via e-mail:
Onésimo,
próximo nº da revista, próximo ou imediatamente a seguir ao Natal, com base no consumo contemporâneo (pode ter e não ter a ver com a época em questão ou pode ser uma abordagem sobre a mesma ou como esta se moldou aos novos tempos):
excesso
obesidade
individualismo
materialismo
hedonismo
o cartão de crédito
a prestação no banco
mass media e TV
colestrol
futilidade
vazio
…
prazos? o quanto antes.
abraço.
A.
A minha resposta:
Caro A.:
O EXCESSO de pedidos de artigos de colaboração faz-me aumentar a OBESIDADE por me prolongar a falta de exercício físico. Sob o risco de parecer INDIVIDUALISMO da minha parte, eu, que nunca fui dado a MATERIALISMOs, nem dialéticos nem económicos, confesso-lhe que julgo merecer hoje um cheirinho de HEDONISMO fazendo um breve intervalozito na escrita e sentando-me à lareira a ler um pouco. Hoje aqui é feriado, dia de Thanksgiving.
Vou, por isso, resistir ao complexo de culpa. Fiquem então vocês aí com o CARTÃO DE CRÉDITO e eu funcionarei como um BANCO a que poderão continuar a recorrer pontualmente. Claro que serei eu a pagar a minha PRESTAÇÃO enviando um artiguito só se, e quando, puder.
Quanto a MASS MEDIA, mal tenho tido tempo para os dois jornais que cá chegam a casa. E de TV, mesmo nadinha.
O COLESTROL vai sofrer hoje e nos dias à volta do Natal. Todavia, como a mais eficaz repressão é a motivada pela experiência do dia seguinte, faço por conter-me. Aprendi na vida.
Sei que estas linhas parecerão a vocês uma total FUTILIDADE e por isso peço que não as publiquem para não estragarem ainda mais a minha imagem.
VAZIO está o estômago, mas só, que o mundo ainda está cheio de coisas boas para nos encherem a mente e o coração.
Se o PRAZO é QUANTO ANTES, é apenas isto que posso rabiscar a poucas horas do jantar-convívio familiar e de amigos aqui em casa.
Um abraço de Providence.
o.
Foto: Altarinho do Menino Jesus de Urbano Bettencourt, Natal 2010