Ashbourne, Arredores de Filadélfia, 23 de Julho de 1908
Quase cinquenta jornais, constatou Emma depois de contá-los um a um. Que Vinny, um dos motoristas da casa, tinha trazido de Filadélfia logo de manhã, seguindo rigorosamente as instruções que ela, Emma, lhe transmitira na véspera: ir aos quiosques da Estação Central e comprar todos os que encontrasse, fossem eles de Filadélfia ou de qualquer outro Estado da União. O que ela nunca esperaria era que ele lhe trouxesse uma tal quantidade de títulos, oriundos de lugares tão diferentes, como aqueles que tinha agora à sua frente, pensou enquanto dava uma rápida vista de olhos pelos respectivos cabeçalhos para identificar os Estados de proveniência, antes de pôr de parte os de Filadélfia, colocando-os do lado direito da secretária. Sim, porque estes trariam certamente notícias mais desenvolvidas que os outros, ou não tivessem estado quase todos representados na conferência de imprensa, pensou, beneficiando assim, para além do acesso aos dados contidos no comunicado, das fotografias e outros informações suplementares que ela lhes tinha fornecido no final. Excepto a data e o local do casamento, que era a informação que eles mais queriam, claro. Que, segundo as instruções de sua patroa, se deveriam manter secretos até tudo se ter passado, para que os noivos não fossem incomodados pelos jornalistas. Seis jornais de Filadélfia, constatou. Quase todos dando, como ela esperava, grande destaque à notícia, alguns colocando-a mesmo em primeira página, congratulou-se Miss Beach, continuando a folheá-los um a um. O Philadelphia Inquirer titulava, em maiúsculas: “MRS. J. B. STETSON SOON TO MARRY PORTUGUESE COUNT”, enquanto o Philadelphia Public Ledger trazia a fotografia de corpo inteiro de Madame, em traje de cerimónia, bela e elegante como só ela sabia ser com a idade que tinha, e uma notícia a duas colunas sob o título: “Mrs. Stetson to be a Count’s Bride“. Em subtítulo explicava-se: “Hat Manufactures’s Widow will be Wedded to Santa Eulalia of Portugal: HER FIANCE IS A SCULPTOR”. O Philadelphia Record, sob o título “A COUNT FOR MRS. STETSON“, trazia notícia e duas fotografias, uma de Mrs. Stetson sentada, com um belo chapéu e um vestido branco, e outra do Senhor Conde, em que ele parecia um autêntico príncipe encantado saído directamente de um conto de fadas, resplandecente no seu elegante uniforme de Fidalgo Cavaleiro da Casa Real, com o peito coberto de condecorações, chapéu bicorne engalanado com um penacho de plumas de avestruz e aquele extraordinário bigode revirado nas pontas que, segundo não poucas pessoas, o tornava parecido com o Kaiser Guilherme II da Alemanha. Se bem que se lhe perguntassem a ela, Emma, a sua opinião pessoal, ela diria que o Kaiser não chegava nem aos calcanhares do Senhor Conde, quer na figura, quer em tudo o resto. “Louvado seja Deus”, “Que beleza de homem, que figura” suspirou levantando os olhos do Record, ela que há muito havia já passado a idade de se interessar pelos homens, condenada a um celibato forçado e sem remissão para o resto da vida, mas que não deixava por isso de ter olhos e ser capaz de apreciar a beleza das coisas e dos seres. “A intensidade daquele olhar, a suavidade da voz”, continuou sem conseguir impedir que um arrepio lhe subisse pela espinha acima. “E todas aquelas boas maneiras, levantando-se da mesa sempre que alguma senhora se põe em pé” acrescentou, procurando desta vez cingir-se a coisas mais neutras, menos palpáveis. “Aquela delicadeza de trato, a fina educação, seja com os senhores, seja com os empregados, sem nunca levantar a voz, com um sorriso sempre pronto a aflorar-lhe nos lábios quando fala; a maneira como se serve do garfo e da faca quando come, com os cotovelos sempre colados ao tronco mesmo quando leva um dos talheres à boca; a forma como mastiga, com a boca bem fechada, só falando depois de ter terminado. Que diferença para o comum dos americanos, meu Deus, que só sabem comer com os cotovelos apoiados sobre a mesa, baixando a cabeça até ao prato como se estivessem a comer numa manjedoura; que mastigam com a boca aberta, sem pararem de falar enquanto vão metendo mais comida à boca”, pensou ela antes de começar a folhear o Philadelphia Telegraph à procura de mais uma notícia. Que encontrou logo na segunda página sob o título: “SCULPTOR COUNT TO WED MRS. STETSON“, acompanhada da mesma fotografia de Senhora publicada pelo Record. Sim, porque o Senhor Conde não era só educação, delicadeza e bom trato, continuou Emma, era muito mais que isso. Era um artista de enorme valor, disso não havia dúvida nenhuma, para além de um poliglota, falando correntemente, segundo dizia, cinco línguas, o que ela, Emma, tinha à partida alguma dificuldade em comprovar, uma vez que, fora o inglês, apenas arranhava qualquer coisa de francês, oui, bonjour, très bien e pouco mais. Mas não havia dúvidas de que para além da sua língua nativa, o português, e do espanhol, que se via que dominava, o Senhor Conde tinha um excelente inglês, quase sem sotaque, e falava francês, língua que utilizava quase sempre para comunicar com Madame, como se fosse a sua própria língua, o que, vendo bem, até nem era para admirar, uma vez que vivera em Paris durante quase dez anos. A que era ainda necessário somar o italiano, língua que sendo latina, podia facilmente entender e falar, por analogia com o português, o francês e o espanhol.
Enfim, nada que se parecesse com todos aqueles aristocratas falidos que tinham andado a arrastar a asa a Madame desde que tinham sabido do passamento de Mr. Stetson. E não tinham sido poucos, recordava Emma, todos cheios de mesuras e boas maneiras, mas que não tinham qualquer actividade conhecida nem falavam outras línguas que não fossem a sua, e muitas vezes mal, apenas se mostrando preocupados em arranjar quem lhes pagasse as obras de restauro e as contas dos castelos que possuíam nos seus países de origem, para além dos vícios que entretanto tinham acumulado ao longo de toda uma vida de ociosidade: jogo, álcool, mulheres, rapazinhos e sabe-se lá que mais. Mas Mrs. Stetson era inteligente e fina de mais para lhes ir na conversa e bem o mostrara. Só uma pessoa como o Senhor Conde, que além do título, da figura e das boas maneiras era um artista e um homem de rara sensibilidade, inteligência e cultura, é que lhe poderia realmente interessar. E o casamento marcado para o dia seguinte aí estava para comprová-lo, concluiu, passando os olhos pelo Philadelphia Press, que apenas trazia na terceira página uma curta notícia sob o título: “MRS. STETSON NOT TO MARRY AN EARL”, referindo-se obviamente não ao Conde de Santa Eulália, mas ao Conde de Clancarty. Mas há males que vêm por bem, disse para si mesma Emma, se não fosse o boato que ele, Clancarcy, despeitado por saber que Madame ia casar com outro Conde, pusera a circular, dando como praticamente certo o seu casamento com ela, talvez Mrs. Stetson e o Senhor Conde ainda não se tivessem decidido, àquela hora. Já que, fora a necessidade de um desmentido formal do noivado com Clancarcy que apressara as coisas, obrigando-a a revelar a identidade do seu verdadeiro noivo. Pelo menos tinha sido esse o argumento que a Senhora usara junto do Senhor Conde para ir para a frente com a conferência de imprensa, pondo fim, de forma definitiva, às hesitações dele, dela, ou de ambos? Vá-se lá saber, concluiu Emma, mesmo a tempo de se aperceber da presença de uma figura esguia e desengonçada, vestida com um fato cinzento-escuro, subindo a pé, por entre as árvores, o caminho de acesso à casa, em direcção à porta de entrada. Um jornalista, sem dúvida, concluiu Miss Beach pegando no último jornal de Filadélfia, o Philadelphia News, onde se podia ler em título na segunda página: “MRS. JOHN B. STETSON WILL BECOME A COUNTESS”. Quando levantou os olhos viu um outro vulto atravessar o jardim, e a seguir outro e ainda outro. “O perigo espreita”, disse para si própria, colocando a pilha de jornais de Filadélfia na estante ao lado da secretária.
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