Ashbourne, Arredores de Filadélfia, 22 de Julho de 1908
Emma Virginia Beach. Mais conhecida por Emma, Emma Beach. Mas que os jornalistas tinham baptizado de Annabelle, vá-se lá saber porquê. Miss Annabelle Beach. Gorducha, estatura média, idade indefinida algures entre os quarenta e os cinquenta, cara redonda e rosada, nariz empinado, boca fina, pequena, com dois vincos acentuados nos cantos, olhos azuis muito vivos, sempre atentos por trás dos óculos redondos com grossos aros de tartaruga, cabelo castanho, fino, apanhado na nuca, com uma franja para a frente, sobre a testa, blusa de riscas beijes e brancas com gola de folhos completamente abotoada até cima, saia até aos pés, bastante rodada para lhe disfarçar a gordura acumulada no rabo e nas ancas. Miss Emma Beach, secretária particular de Madame. Que o resto do pessoal ao serviço da casa tratava respeitosamente por Miss Beach. Mesmo que às vezes ela tivesse a sensação de que a forma como pronunciavam o seu nome soava mais como bitch do que como Beach. Enfim, subtilezas da língua inglesa que alguém com o apelido Beach, do sexo feminino, era forçado a ignorar, tinha ela decidido desde há muito, uma vez ultrapassada a irritação inicial, já que a única coisa que estava ao seu alcance fazer – perguntar ao autor ou autora da graça se lhe estava a chamar Miss bitch em vez de Miss Beach – era pior, muito pior do que não fazer nada, já que não seria difícil imaginar qual poderia ser a resposta: “eu, chamar Miss bitch a Miss Beach? Não, Miss bitch, percebeu mal. Quando digo Miss Beach, digo Miss Beach, não digo Miss bitch, compreende Miss bitch?”
Miss Beach no escritório, sentada à secretária de frente para a janela, com duas folhas e bandeira, através da qual podia de quando em quando alongar a vista sobre o vasto relvado, lá em baixo, a toda a volta da casa, pontuado aqui e acolá por árvores frondosas e altas, descendo depois suavemente até ao sopé da colina por onde passava a Old York Road que ligava a Filadélfia. Como agora, antes de começar a folhear os jornais do dia, à procura de notícias alusivas ao anúncio público feito na véspera por Mrs. Stetson perante os correspondentes dos principais jornais de Filadélfia, aproveitando um momento de relativa calma na casa, já que Madame e o Senhor Conde tinham acabado de sair de automóvel para irem tratar da licença de casamento a Norristown. E que os preparativos na sala da música e no hall gótico decorriam a bom ritmo.
Ela mesma passara a manhã do dia anterior a telefonar para os jornais, dando-lhes conta de que um importante anúncio iria ser feito por Mrs. Stetson relativamente aos boatos que corriam na cidade acerca do seu próximo casamento com um nobre europeu. Sem no entanto adiantar rigorosamente mais nada, como é óbvio, apesar da insistência deles. Era a Mrs. Stetson que competia fazer o anúncio e não a ela, como eles facilmente compreenderiam, insistiu. A conferência de imprensa, se assim se lhe podia chamar, tinha decorrido ali mesmo no jardim, frente ao alpendre da biblioteca. Mrs. Stetson, com a serenidade e presença de espírito que a caracterizavam, depois de agradecer a presença dos jornalistas, leu em voz alta, pausadamente, o comunicado que ela, Emma, tinha redigido a partir dos dados que lhe tinha deixado, numa nota escrita pelo seu próprio punho, o Senhor Conde:
“The engagement is announced of the Count Santa Eulalia to Mrs. S. Elizabeth Stetson. The latter is the widow of John B. Stetson, of Philadelphia. Count Eulalia, who is about 50 years of age, is a member of one of the oldest and most representative families of Portugal, his ancestors having been for generations hidalgos cavalleiros da casa real of Portugal. One of them, Dom Manuel Pinto Riberio da Fonseca, was in 1404 grandmaster of the Crusaders, the only Portuguese to be so honoured. The Count is a sculptor of considerable note, his works having been placed in various cities of Europe and America. He was the recipient of the Grand Prix of the Paris Salon in 1892.”[1]
O comunicado tinha sido cuidadosamente revisto uma última vez, por um e por outro, depois do almoço, antes de abalarem de automóvel para o passeio habitual de todas as tardes desde que o Senhor Conde se instalara ali em Idro, por ocasião do 4 de Julho, Dia da Independência, havia já quase três semanas. O Senhor Conde tinha feito ainda mais algumas correcções a somar às anteriores, sobretudo em relação à ortografia dos nomes e palavras em português, que fazia questão fossem todos correctamente transcritos. Infelizmente só à noite, já depois da conferência de imprensa, é que ele pudera ler a versão que ela mesma, Emma, tinha dactilografado e distribuído aos jornalistas, detectando de imediato, mesmo assim e apesar de todas as revisões, vários erros que ela não tinha podido evitar, ignorante como era da língua portuguesa falada e escrita.
Que em português se escrevia fidalgos e não hidalgos, que era castelhano, língua falada em Espanha, mas não em Portugal, país independente há mais de sete séculos, fez questão de explicar o Senhor Conde num assomo de nacionalismo que só lhe ficava bem, já que para qualquer americano médio, Portugal e a Espanha eram normalmente confundidos num único país, a Península Ibérica ou Ibéria, situado algures do outro lado do Atlântico, entre a França e Marrocos. Confusão que mesmo ela, Emma, que se orgulhava de possuir bons conhecimentos de história e geografia, teria tendência a fazer, não fosse as explicações que em boa hora lhe tinha dado o Senhor Conde. Que o nome do seu antepassado ilustre, citado no comunicado, era Ribeiro e não Riberio, como ela, certamente por engano, tinha escrito. E que tinha sido grão-mestre da Ordem de Malta e não dos Cruzados, em 1704 e não em 1404, como erradamente se referia no comunicado. “Sempre são três séculos de diferença, Emma”, tinha dito com uma pontinha de ironia o Senhor Conde, curiosamente não lhe fazendo qualquer reparo em relação à idade com que aparecia no comunicado, ou seja “about 50 years of age”, em vez dos 40 que realmente tinha. “Olhe que sempre são dez anos de diferença, Senhor Conde, que se para a história de um país é pouco, para a vida de uma pessoa é muito”, gostaria ela de lhe ter dito também, alto e bom som, respondendo à letra ao remoque do Senhor Conde. Mas não, não poderia obviamente fazer uma coisa dessas para não embaraçar a sua patroa, já que fora ela a autora da alteração. Para evitar ditos e dichotes sobre as reais intenções do Senhor Conde, se se soubesse que ela ia casar com um homem dez anos mais novo? Sim, olhando para um e para outro, ninguém diria, mas era verdade, Mrs. Stetson tinha mais dez anos que o Senhor Conde, já que nascera em 1858, enquanto ele nascera em 1868, tal como ela pudera constatar com surpresa ao ler as certidões de nascimento de ambos alguns dias antes, juntamente com a restante papelada que fora necessário reunir para pedir a licença de casamento. Era o mais provável, embora não lhe tivesse dado qualquer explicação para o facto. Nem ela tão pouco lha pedira, como é óbvio. Como se a idade fosse realmente importante no amor, deu por si a divagar Emma. Ainda por cima tendo Madame uma aparência tão jovem e elegante, como na véspera não se tinham cansado de repetir todos os jornalistas, logo que ela se tinha ido embora. Depois de ter respondido uma a uma, com assinalável brilhantismo e presença de espírito era preciso reconhecê-lo, às perguntas deles, disparadas umas a seguir às outras, em tom por vezes agressivo e sensacionalista, como só os jornalistas americanos sabiam fazer: quando e onde ia ter lugar o casamento? Quando é que o Conde chegava a Filadélfia? Porque é que Mrs. Stetson não tinha esperado por ele para dar a notícia? Se o Conde tinha fortuna pessoal ou se não se trataria apenas de mais um caçador de fortunas? Onde é que podiam ser vistas as suas obras como escultor? Se ele era mesmo conde e quem lhe tinha dado o título? O que é que fizera Mrs. Stetson mudar de ideias para preferir agora um conde português, em vez do irlandês Conde Clancarcy, que informações postas a circular recentemente em Filadélfia, davam como certo ser o feliz eleito? E mais, muitas mais perguntas que Emma não conseguira reter.
Madame começou por explicar que o essencial da informação que os senhores jornalistas precisavam para fazer o seu trabalho estava contido no comunicado que tinha acabado de ler e que a sua secretária particular, Miss Beach, lhes iria distribuir de seguida. O que queria dizer que nada estava ainda decidido quanto à data e local onde teria lugar o casamento. Em relação ao Senhor Conde, ele estava neste momento a caminho de Filadélfia vindo de Chicago, onde o tinham retido as suas funções diplomáticas de Cônsul de Portugal naquela cidade. Quanto à sugestão de que ele poderia ser um caçador de fortunas, considerava-a pessoalmente ofensiva, já que a relação entre ela e o Conde era baseada exclusivamente no amor e na amizade que os unia havia já bastante tempo. Para além de que, não sendo o Conde um homem rico no sentido americano do termo, também não era alguém completamente desprovido de meios, uma vez que recebia um rendimento considerável das propriedades que possuía no seu país, para além do que realizava com o seu trabalho como escultor, e que não era pouco. Sem esquecer que desempenhava também funções diplomáticas de relevo ao serviço do seu país e do seu Rei, como Cônsul de Portugal em Chicago. Sobre o seu suposto noivado com o Conde de Clancarcy, Madame tinha sido seca e cortante, dizendo que conhecia o Conde há muito tempo como marido da sua grande amiga Belle Bilton, recentemente desaparecida. E que o tinha acompanhado na sua dor e sofrimento pela morte da mulher, depois de ela própria ter passado por idêntica experiência dois anos antes, com a morte do seu próprio marido, mas que nada mais a ligava ao Conde de Clancarcy senão uma profunda e sincera compaixão. Pelo que, tudo o que pudesse ser dito para além disso, não passava de pura especulação jornalística, sem qualquer crédito.
Em seguida Madame pedira aos jornalistas que esperassem um pouco e, sem mais explicações, dirigira-se para o interior da casa, para aparecer algum tempo depois com duas das obras do Senhor Conde, fazendo questão de ser ela própria a trazê-las, como sinal do profundo apreço e admiração que sentia pelo seu trabalho de artista. Bem patentes também na expressão de orgulho e satisfação com que as mostrou, ela que normalmente era tão reservada para os estranhos. Todo o rosto se lhe iluminou num belo sorriso ao dizer: “estas, são duas obras feitas pelo Conde. O óleo é evidentemente um original. E esta é uma fotografia da escultura com que ele ganhou o Grande Prémio no Salon de Paris em 1892″. Eram sem dúvida duas obras de grande nível, a avaliar pelos comentários positivos e gestos de agrado trocados entre os diversos jornalistas. A pintura a óleo representava uma paisagem bucólica do norte de Portugal, zona de onde era originário o Senhor Conde, enquanto a fotografia mostrava um belo busto de mulher esculpida em mármore, denominada Extase Religieuse que, diziam os entendidos, fazia lembrar muito as esculturas de Rodin, famoso escultor francês com quem se dizia que o Senhor Conde tinha tido a oportunidade de trabalhar, durante a sua permanência em Paris, e que muito o tinha influenciado.
Depois, ante a insistência de alguns dos jornalistas sobre se havia outras obras que pudessem ser vistas, Madame pediu-lhe a ela, Emma, que fosse buscar a pasta com as fotografias de outros trabalhos do Senhor Conde que estava na biblioteca, entre os quais se contava aquela extraordinária estátua da Rainha Dona Amélia de Portugal, a quem tinham morto há poucos meses o marido, D. Carlos, e o filho mais velho, tendo ela e o outro filho, o que agora era o Rei, escapado por milagre, explicara-lhe emocionado até às lágrimas o Senhor Conde que, com o falecido Rei, mantinha relações de amizade e estima pessoais. A fotografia mostrava a Rainha, magnífica, opulenta num belo vestido bastante cingido ao corpo e decotado, realçando-lhe a cintura delgada, o peito e a curva das ancas, sentada no seu trono de rainha, encimado pelas armas de Portugal. Ao lado da estátua da Rainha aparecia o próprio Senhor Conde, vestido com um casaco curto, branco, cotovelo apoiado num dos lados da cadeira do trono, como se preparasse para lhe beijar respeitosamente a mão.
Perante o ar embasbacado dos jornalistas face a um exemplar tão grandioso da arte do Senhor Conde, explicou Mrs. Stetson que aquela estátua estava prestes a ser enviada para Portugal, onde o actual Rei, D. Manuel II, a queria ver colocada em lugar de destaque numa grande praça de Lisboa, em homenagem a sua Mãe. Em seguida, mostrou ainda aos jornalistas mais algumas fotografias de outras obras do Senhor Conde, que foi tirando da pasta, assim como dele próprio em várias poses e trajes. Por fim, Mrs. Stetson convidou-os a entrar no hall principal da casa, ou Gothic Hall, como era conhecido pelo seu alto pé direito fazendo lembrar as catedrais góticas do velho Continente, para poderem apreciar o magnífico baixo-relevo em bronze de homenagem a Henry Addison DeLand, fundador da cidade de DeLand, Florida, mais uma obra da autoria do Senhor Conde, que lhe fora encomendada ainda por Mr. John B. Stetson, o qual, era um admirador incondicional do trabalho do Conde, fez Madame questão de salientar. O baixo-relevo iria em breve ser colocado na Universidade Stetson, que o seu falecido marido fundara com Mr. DeLand na Florida, explicara por fim, antes de dar por concluído o encontro com os jornalistas.
cont…
[1] “Anuncia-se publicamente o noivado do Conde de Santa Eulália com a Senhora S. Elizabeth Stetson. Esta última é viúva de John B. Stetson de Filadélfia. O Conde de Santa Eulália, que tem cerca de 50 anos, é membro de uma das mais antigas e mais representativas famílias de Portugal, tendo os seus antepassados sido, por gerações, hidalgos cavaleiros da Casa Real de Portugal. Um deles, Dom Manuel Pinto Riberio da Fonseca foi, em 1404, Grão-Mestre dos Cruzados, o único português a possuir tal honra. O Conde é um escultor de considerável mérito, tendo trabalhos expostos em variadas cidades da Europa e da América. Em 1892 ganhou o Grande Prémio do Salon de Paris.”