Este livro que aqui se lança hoje, apresentado pelo próprio Autor, enquadra-se no género literário relato de doença ou, como de há uns anos para cá se vem chamando na América, patografia. Claro que qualquer relato de doença pode assumir uma variedade de géneros literários. Pode, por exemplo, ser um diário que o paciente ou cuidador manteve; pode ser um livro de versos; e pode ser uma autobiografia, isto é, uma uma narrativa em prosa em que narrador e paciente coincidem; ou então uma biografia, em que o narrador, como no caso deste livro, é um pai que narra um episódio da vida do seu filho, o paciente.
Aliás, Viagem pela Escuridão é, simultaneamente, uma autobiografia e uma biografia: é o testemunho de uma pai que narra as peripécias de ter assistido e ajudado o seu filho, Evan, a fazer aquilo que foi, até hoje, a viagem mais dolorosa da sua vida; e, ao mesmo tempo, a biografia desse filho que, tendo vivido essas peripécias, não é o principal autor delas. Esta distinção é importante.
Como autobiógrafo, eu posso dar como facto adquirido que sei o que se passou a partir do diagnóstico de meduloblastoma, da intervenção cirúrgica para ressecção do tumor, dos tratamentos de radioterapia e quimioterapia, das várias intervenções cirúrgicas posteriores, das quais a mais dolorosa foi aquela a que o Evan foi submetido para inserção de um tubo gastroentérico através do qual foi alimentado durante mais de um ano, depois de uma temporada em que ele era a pessoa que introduzia um tubo de borracha por uma narina até lhe chegar ao estômago – através do qual recebia a alimentação. Foi quando esse tubo deixou de ter qualquer utilidade, pois ele vomitava-o ao mais leve movimento ou arroto, que a intervenção cirúrgica se tornou necessária. Houve, simultaneamente, com todos estes procedimentos que brevemente esquematizei um ano de escolaridade no domicílio orientado por mim, pois o diagnóstico e tratamentos do Evan coincidiram com o seu ano de finalista na escola secundária e ele, durante os tratamentos, nunca esteve em condições de frequentar aulas.
Portanto, voltando à diferença entre uma biografia e uma autobiografia, eu sei o que foi, do meu ponto de vista, e até certo ponto do ponto de vista da minha esposa Maria Deolinda, o drama por que passou o nosso filho. Mas nós não saberemos nunca o que é que ele, Evan – à época, um jovem atlético de 17 anos até então saudabilíssimo – ao ver o curso da sua vida interrompido não só durante um ou dois anos, mas para todo o sempre – pois os efeitos colatarais da doença, sobretudo aqueles que se traduziram numa enorme depressão clínica que ainda dura, provavelmente persistirão enquanto ele viver.
E para cabalmente contar o que toda esta tragédia implica tornar-se-ia, quanto a mim, necessário que fosse a vítima a narrar a sua história, isto é, o Evan a escrever a sua autobiografia. Por muito bem que eu tenha captado a tragédia da nossa família, o que eu sobretudo captei foi a experiência de um pai, e até certo ponto de uma mãe, ao ver o seu filho passar por um experiência indizível – mas nunca saberei o que é ser¬-se um jovem na flor da idade e ver-se confrontado com uma luta destas dimensões. Aliás, chegámos, o Evan e eu, a discutir a possibilidade de eu contar a minha perspetiva dos eventoss e ele a sua. O Evan concordou. Mas os tratamentos, a depressão, e depois o desejo de deixar todas essas experiências para trás e libertar-se delas… fizeram com que ele nem quisesse sequer ouvir falar mais do que lhe acontecera. Daí que o Evan não tenha ido aos Açores lançar este livro. E apesar de há muitos meses eu ter um exemplar dele em casa, o Evan nem sequer o folheou ainda.
E quem me lê perguntar-se-á: para quê escrever um livro destes, sendo ele tão doloroso que nem o próprio paciente, que chegou a colaborar com ensaios literários e extra-literários escritos durante os tratamentos e intimamente relacionados com a sua tragédia, agora se digna olhar para o texto em que se narra a sua história? A minha resposta é muito simples: é que o Evan, que em dado momento precisava lembrar, agora está numa fase da vida em que precisa esquecer; eu e a mãe, porém, precisamos e creio que precisaremos sempre lembrar. E mais: quando estávamos a passar pelas experiências que experimentámos, sentíamos uma necessidade quase física de gritar, literariamente falando, aos quatro ventos a dor que nos esmagava. Quando eu escrevi este livro – num espaço de 11 dias – o meu filho estava no hospital sob vigilância médica, pois acabava de fazer uma tentativa de suicídio com uma overdose de calmantes. Eu e a minha mulher estávamos os dois em casa sem, literalmente, saber o que fazer de nós. Eu sentia-me como uma animal encurralado, capaz de tudo – de tudo menos afundar-me em mim mesmo e aquiescer. Queria lutar, precisava contar, sentia a necessidade de partilhar. Como qualquer ser humano, só sei gritar chorando a sós ou com membros da minha família; ou então, quando as lágrimas não são o suficiente, eu preciso gritar mediante a escrita, os meus dedos voando por sobre as teclas do computador – pois, modéstia à parte, tenho conhecido poucas pessoas que sejam capazes de datilografar com a rapidez com que eu datilografo, habilidade que adquiri ainda antes de emigrar quando achei, na licheira dos Americanos da Base, uma máquina Underwood que consertei, nela pratiquei incessantemente, naquela altura com a esperança de eventualmente, com o inglês que estudava, com um senhor pedófilo do Juncal que depois morou na Canada da Saúde – língua essa que eu esperava que me salvasse nos Açores salazarentos da época (estamos em 1958-1960) conseguindo-me um emprego na Base. Isso não aconteceu. Mas foi esse inglês a minha tabuínha de salvação do outro lado do Atlântico, pois foi devido a ele que eu hoje sou professor catedrático numa grande universidade americana.
(Continua)