(Texto da Professora Berta Pimentel Miúdo, e que trata dos capítulos 3º e 5º sobre “De Marx a Darwin: A desconfiança das Ideologias“).
Começo por avisar que esta viola da terra vai desafinar: as ‘cravelhas’ são de madeira, à antiga, e só tem um coração, ‘mal-amanhado’. A minha querida amiga Gabriela Castro pôs a bitola científica em patamares de discussão muito elevados, pelo que a minha intervenção nesta sessão se resume a breves reflexões exploratórias de dois capítulos do livro, concretamente o terceiro, “Cultura versus natureza – uma revisitação”, e o quinto, “Do (re)conhecimento da ignorância como saudável atitude fundacional”.
Um destes dias, caminhando pelas calçadas de Ponta Delgada e tendo, então, conhecimento apenas do título da obra, De Marx a Darwin. A desconfiança das Ideologias, lembrei uma história que ocorreu há alguns anos, no contexto de uma disciplina por mim leccionada, ‘História e Filosofia da Cultura’. A reflexão em torno do conceito de cultura (trave-mestra do capítulo terceiro) implicou, necessariamente, uma incursão sobre o conceito de ideologia. Recomendei como leitura o texto de Onésimo Teotónio Almeida, publicado em 1995 na Revista Comunicação e Linguagens. A minha recomendação foi aplaudida com entusiasmo, pois os alunos, cerca de uma vintena e maioritariamente açorianos, conheciam sobejamente o autor (julgava eu!). Chegado o dia de análise e discussão do referido texto, verifiquei que o entusiasmo se metamorfoseara numa mistura de desconforto e confusão. Os trabalhos não avançavam, e por mais solicitações que fizesse não conseguia obter um discurso fundamentado, pelo que perguntei abertamente: «Então, o que se passa?» Eis quando alguém se enche de coragem (é preciso coragem para dizer o que eu vou, simplesmente, repetir) e esclarece: «É que este Onésimo não tem graça!» Só então percebi que conheciam o homem, mas desconheciam o pensador. E não foi fácil reconciliar o homem da fala, ‘com graça’, no espaço público com o pensador da palavra, ‘sem graça’, do texto filosófico.
Mas Onésimo Teotónio Almeida tem graça, mesmo! Tem muitas graças até! Se quisermos olhar pelo lado religioso (estando aqui connosco o nosso querido Doutor Octávio Medeiros, Vigário Episcopal) não lhe faltam sabedoria, entendimento, fortaleza ou ciência. E uma das graças que Onésimo tem é, sem dúvida, a frontalidade e a seriedade com que discute os temas filosóficos, seja numa perspectiva histórica integrante dos problemas da metafísica clássica, seja numa perspectiva sistemática potencialmente estruturante da compreensão da vida humana na contemporaneidade, como é o caso desta última obra.
O livro que agora nos pre-ocupa é, pois, um texto plantado em terreno do saber, do mais puro amor à sabedoria, logo é aí que tem que dar frutos, entenda-se sementes do seu valor.
Sendo um texto filosófico, por excelência, o discurso não deixa porém de reflectir a marca do homem, isto é, a argumentação é amiúde entrecortada por elementos narrativos extraordinários. Leia-se a propósito a citação da definição de anedota de Nöel Carroll, longa, analítica e palavrosa: «X é uma anedota se e só se (1) x é um discurso verbal integralmente estruturado, geralmente em forma de riddles ou narrativa (…), implica a presunção de pelo menos um desses erros pelo implicado ou pelos ouvintes, (6) mas em que o erro é supostamente reconhecido como erro pelo ouvintes.» Como referi, o excerto citado não é de Onésimo Teotónio Almeida, o que é da sua autoria é a afirmação sucedânea e o enquadramento precedente. Diz Onésimo: «Estou certo de que ficaram finalmente a perceber por que razão rimos de uma anedota». Quanto à contextualização precedente da definição atrás lida, pretende ser o desmascaramento, via «Filosofia do Humor», da «táctica da avestruz» com que muitos pensadores revestem as suas (in)conclusões científicas.
Relendo, em voo de reconhecimento, o capítulo terceiro, que recordo se intitula “Cultura versus natureza – uma revisitação”, permitam-me começar precisamente pela segunda parte do título, «uma revisitação». A militância revisitante de Onésimo Teotónio Almeida é notória e única. Que eu tenha conhecimento, a ele ninguém se iguala. Trata-se, sem qualquer pretensão pseudo-analítica, de um aspecto revelador do homem e do pensador. A atitude de revisitação diz-nos do homem: ser alguém que está bem por onde passa, deixando pistas seguras, qual ‘fio de Ariane’, para um voltar sempre. Do pensador, diz-nos que não vive de verdades últimas, pré-fabricadas e feitas de uma vez para sempre. Parafraseando Ortega, diríamos que esta é a autêntica atitude do filósofo, pois o trabalho filosófico não se faz a ‘talho de foice’, mas usando a táctica narrada no texto bíblico da Tomada de Jericó: circundando repetidamente os problemas, para que da súmula de perspectivas conquistadas possamos chegar a planos superiores de compreensão.
Outro elemento que marca e caracteriza o discurso de Onésimo Teotónio Almeida é o envolvimento da sua pessoa na análise dos problemas. Discurso directo, escrito e conjugado na primeira pessoa do singular, que todavia convoca reiterada e persistentemente o leitor para interlocutor, ora porque partilha as suas mais recentes leituras e experiências de pensamento, ora porque, recorrendo aos tais momentos extraordinários da narrativa, nos coloca dentro da sua casa a propósito de uma begónia que, tendo crescido desmesuradamente, teve que ser dividida em dois vasos iguais, embora com destinos diferentes. Leia-se: «Vês? – conversa de Onésimo com o filho Duarte – Biologicamente iguais e em vasos iguaizinhos, com a mesma terra e alimentos. Ponho a mesma água em ambas as plantas todas as semanas, mas nota-lhes a diferença. Uma está num quarto voltado para sul, onde a luz do sol entra todo o dia, de Verão e Inverno; (…). Repara como está esplendorosa. A outra, na galeria, está voltada para norte. Janela rasgada, muita luz, mas aqui não entra o sol directamente. (…). Vê como está raquítica». Moral da história (sem repercussões quanto ao desempenho escolar dos filhos): a culpa é sua, Professor Onésimo. Pôs esta planta num sítio onde mirrou. Passando a brincadeira, esta história remete-nos directamente para o plano em que Onésimo Teotónio Almeida pretende que seja equacionado o debate e a reflexão: «Cultura é o que se opõe à natureza, isto é, tudo o que resulta da intervenção humana sobre a natureza».
Profundo conhecedor de toda a problemática e polémicas em torno da definição de cultura, Onésimo Teotónio Almeida apresenta com clareza as duas vertentes (um pouco ou até mesmo muito gastas) do debate contemporâneo: construtivistas versus naturalistas. Os primeiros, defendendo que a cultura por nós herdada resulta de uma construção a desconstruir noutra construção. Os segundos, na linha de um reducionismo naturalista, propalado em vastíssima bibliografia contemporânea, especialmente no campo das ciências cognitivas, pretendendo agrilhoar a realidade humana no reduto natural. Discutindo com os mais actuais e ilustres representantes destas duas orientações enviesadas da relação cultura/natureza, especialmente a segunda, seja J.Q. Wilson ou F. Crick, Onésimo Teotónio Almeida conclui pela impossibilidade de mapear a pessoa no seu todo, qual auto-transparência absoluta. Há toda uma dimensão constituinte e constitutiva da vida humana que escapa ‘como água por um cesto de vimes’ ao determinismo naturalista, especialmente no domínio da racionalidade prática, da acção, ética e política, em que estão envolvidos conceitos fundamentais como liberdade, respeito ou justiça. Leia-se: «Daí que os debates sobre o grau de predomínio entre as forças da natureza ou da cultura permaneçam bem acesos no nosso tempo e não se consiga encontrar argumentos em favor do determinismo biológico, tal como ninguém até aqui conseguiu fazê-lo para outro determinismo qualquer. Apesar dos extraordinários avanços das últimas décadas, continuamos no escuro em relação a peças fundamentais do ser humano e da sua existência».
Quanto ao interessantíssimo capítulo quinto, intitulado “Do (re)conhecimento da ignorância como saudável atitude fundacional”, brevíssimas palavras, apesar de ser um tema aliciante. Tratando-se de um vasto território, profusamente habitado por indivíduos que não querem perder o abrigo, é abalado com frequência por irrupções forasteiras desestruturantes, que medeiam entre o reconhecimento e a conquista. A linha de pensamento seguida por Onésimo Teotónio Almeida tem matriz epistemológica, porém extravasando sentidos para outros âmbitos filosóficos. Sem recorrer, pelo menos logo de início, à famosa douta ignorância de Sócrates, que inaugurou a filosofia como discurso de desvelamento partilhado, e avançando na discussão das questões em torno da possibilidade e unicidade do conhecimento, o autor conclui que uma das grandes marcas do conhecimento dos nossos dias é a consciência da nossa ignorância.
Qual raposa, na metáfora de Isaiah Berlin (ou João dos Ovos, na versão açoriana), Onésimo Teotónio Almeida, com a sua autenticidade filosófica, sabe as muitas pequenas coisas necessárias para a re-invenção do presente e compreensão do futuro.
E por que de um ‘balho furado’ se tratou, vamos deixá-lo às voltas com Darwin.
Muito obrigada a todos, especialmente a si Professor Onésimo Teotónio Almeida.
Berta Maria Oliveira Pimentel Miúdo
Ponta Delgada, 18 de Novembro de 2009
Berta Pimentel Miúdo é Professora Auxiliar do Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade dos Açores, exercendo docência nas áreas da Filosofia dos Direitos Humanos e Relações Internacionais. No tocante à investigação, tem privilegiado o estudo do pensamento de José Ortega y Gasset, sendo autora do livro Sentidos da Vida e do Mundo, bem como de vários artigos publicados em colectâneas e revistas de especialidade. Desenvolve igualmente investigação no âmbito de dois projectos científicos, sobre Estética e Açorianidade (REMA) e Filosofia para Crianças(CRIA).