Popularíssimo nos Açores e em Portugal, o “Pão-Por-Deus” é a brincadeira das boas almas, plenas de candura e de amor, nesses tempos tão bicudos e tão conflagrados pela guerra, pela cizânia e pela incompreensão.
Esses versinhos desdobráveis faziam furor na Desterro do século 19, como uma mensagem de simples amizade entre as pessoas. Ou um “agrado” movido por um “coração doce” na conquista de algum “prometido” ou “prometida”. Os de intenção galante também eram conhecidos por “Corações-por-Deus” – enquanto endereçados com essa expectativa romanesca.
O versinho simples e despretensioso solicita ao destinatário alguma dádiva, um “Pão-por-Deus”. Querendo sugerir, talvez, que dar de comer ao corpo ou ao espírito de um necessitado é o melhor caminho para se obter um “superávit” nos cadernos do Senhor.
Os pequenos corações conhecidos por “Pães-por-Deus” são mensagens minimalistas, registradas à mão num papel multicor, recortado em engenhosas filigranas e rendilhado por paciente tessitura, autêntica tapeçaria do “bem-querer”. Alguns desses corações demandam até uma certa “arte” e um certo “jeito” para abri-los, sem rasgar o frágil papelzinho. No interior, em rima simples, um pedido, uma mensagem de fé ou de amor – embora não fosse incomum o chiste eivado de fina ironia.
Em Floripa, relata o nosso inesgotável e múltiplo Oswaldo Cabral, o “Pão-por-Deus” começava a cumprir seus itinerários no finalzinho de outubro e início de novembro, como um prenúncio da afetuosa atmosfera do Natal – e a decorrente generosidade dos espíritos.
Até o cronista andou “cometendo” os seus próprios “Pães-por-Deus”, embora trocando o ânimo naturalmente pacífico desses corações por enérgicas mensagens eróticas ou guerreiras, as últimas à guisa de combater maus políticos e governantes.
Com os salários do funcionalismo estadual em atraso, perpetrei:
Um Pão-por-Deus ao valente/ Funcionário que não recebe/ Ao governador, água que gato não bebe/ E que o diabo o carregue/.
Aos políticos da época, meados dos anos 90, legítimos precursores dos “mensalistas”, dediquei:
Abra com paciência/ O lacinho desse isopor/Aqui vai um “Pum” por Deus/ Pros políticos istepor/.
Para as bruxas e as belas da Lagoa da Conceição, reservei o meu melhor “Pão” erótico:
Aqui vai meu coração/ Embrulhado em renda ilhoa/Quero que enterrem meu bilro/ Bem no ventre da Lagoa/…
Numa graciosa roda de papel crivada de coraçõeszinhos, desembarca aqui em casa – pelo velho Correio e não por e-mail, pois a “modernidade” não combinaria com o regalo – um “Pão-por-Deus” a mim endereçado pela amável leitora Désia Cavalheiro. Simpaticíssima mensagem, que dizia:
Aqui vai meu coração/ Envolto nas brumas da Ilha/ Oferto aos meus amigos/ Tão singela maravilha…/
Sensibilizado com o presente – e com a artística “engenharia” que dividiu o círculo cravejado de corações em exatos 18 gomos, 18 avos de pura inocência e candidez – apresso-me a responder tão delicada mensagem por meio desta janela impressa, “avionando” o seguinte e extenso “Pão-por-Deus”:
Leitora amiga, Deus te bendiga/ Mando daqui meu coração/ Mesmo junto com a barriga/ Pois teu pão animou o mandrião!/.
Foto: Victor Alves, Ed.Bernúncia.
sergio.ramos@diario.com.br
_____________________________________________________________________
Sergio da Costa Ramos
Nasceu em Florianópolis, Santa Catarina. Jornalista e escritor.Assina uma coluna de crônica no Jornal Diário Catarinense com saídas diárias.É Membro da Academia Catarinense de Letras. Da sua produção literária mais recente, destacam-se as obras: Sorrisos meio sacanas; O plano surreal; Rapsódias do mundo Bin – Ou não confia nem no carteiro; Piloto de Bernúnça; Costela de Adão – De um fiel às mulheres e a boa mesa e Duas Violas Arteiras (com Flávio Cardozo)