Para a Maria Aurora,
um adeus
Na mais antiga imagem que guardo dela, a Maria Aurora percorre o Salão Nobre do Teatro Municipal do Funchal para me receber. Tão expansiva e acolhedora como se nos conhecêssemos desde há longos anos. Isto era em 1996, eu chegava à Madeira para participar num Encontro sobre «A Literatura nas Ilhas» (Madeira, Canárias, Cabo Verde e Açores), integrado na 22.ª Feira do Livro do Funchal (para quem não saiba, o Funchal tem uma Feira do Livro digna deste nome). Éramos cinco em diálogo informal com o público numa tarde de sol a cair lá fora sobre os jacarandás da Avenida Arriaga.
No ano seguinte, o Encontro deu lugar ao Colóquio Internacional «As Ilhas e a Mitologia». Outra dimensão, maior número de participantes e já não provenientes exclusivamente das ilhas, outros resultados a nível das comunicações, posteriormente impressas em Actas. Até 2006, os Colóquios do Funchal foram aquilo que se conhece: um espaço de reflexão diversificada sobre cultura, literatura, uma «placa giratória» de saberes, conhecimentos, indagações e também muitos afectos.
A Maria Aurora soube convocar e reunir pessoas de reconhecida qualidade intelectual e científica, dentro e fora do país, vindas de outras ilhas e diferentes continentes (Europa, África, América do Norte e do Sul) e isso fez dos Colóquios um singular encontro de sensibilidades e culturas, de amizades que se prolongaram no tempo (algumas delas já fatalmente interrompidas, como as de Luisa Villalta, José António Gonçalves ou Luciana Stegagno Picchio). E teve, do seu lado, o apoio da Câmara Municipal do Funchal, particularmente através do seu pelouro da Cultura e do núcleo que completava as «mulheres do Teatro»: a Lina, a Teresa Brazão e a Maria da Paz. E soube ainda ir buscar o apoio de docentes da Universidade da Madeira.
Em 2006 não fui ao Colóquio. Estive mais cedo no Funchal a participar na Feira do Livro, a pretexto da apresentação da antologia de poetas dos Açores e Madeira, Pontos Luminosos (organizada pela Diana Pimentel, pela Maria Aurora e por mim). Era um projecto antigo, este, também acarinhado pelo José António Gonçalves que já não pôde vê-lo concretizado. A antologia atestava o interesse cultural e o afecto que os Açores sempre mereceram a Maria Aurora; interesse e afecto demonstrados ainda pela presença regular nos Colóquios de intelectuais e escritores açorianos dos mais diversos quadrantes, ou pelos convites dirigidos a artistas açorianos que lá puderam conviver com outros chegados de diferentes geografias culturais.
Uma nota ainda: no Colóquio de 1997 participou o escritor espanhol Enrique Vila-Matas. A Madeira do romance A Viagem Vertical é uma consequência disso; como o também são, embora por via indirecta, os Açores de O Mal de Montano ou de Desde a Cidade Nervosa, porque a vinda do autor aos Açores surge no rasto da sua passagem pela Madeira.
No final de Maio passado telefonei à Maria Aurora. Pensava vir a S. Miguel, em Julho, a convite de um amigo emigrante. Tinha ainda de resolver a questão da hemodiálise cá. Planos cortados, como sabemos hoje.
Sinceramente, vou ter muitas saudades da voz transbordante e afectuosa da Maria Aurora nas conversas cruzadas do fim de tarde no Café do Teatro. Também da sua voz enérgica e decidida, como naquela tarde de 2006 em que pegou no telemóvel e pôs na ordem o cantor lisboeta que viera para o Funchal armar-se aos cucos: «Senhor (…), a partir deste momento a Câmara do Funchal já não tem qualquer responsabilidade para consigo. Meta-se num táxi para o aeroporto e apanhe o avião para casa!»
Minha amiga Maria Aurora, um adeus dos Açores.
Urbano Bettencourt
12 de Junho 2010