A necessidade de escrever, de gritar aos quatro ventos a dor que nos consome, de contar, de narrar uma doença grave pessoal ou que afeta um membro da nossa família – e eu sei que há pais e mães que me estão a ler, e que por isso não preciso definir ou explicar essa dor, no caso de um filho – é aquilo que hoje, na América, constitui uma disciplina académica que tem um nome: medicina narrativa. No entanto, essa nova disciplina, que se estuda e leciona em universidades célebres, sobretudo a futuros médicos em escolas de medicina como a Escola de Cirurgia da Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, é uma velha técnica que pais e mães, sobretudo estas, sabem e praticam deste tempos imemoriais. Que fazemos quando uma desgraça nos acontece ou sobretudo acontece aos nossos filhos? Contamo-la a outrem; gritamo-la a quem nos quiser, e até a quem não nos quiser ouvir, pois precisamos de empatia, precisamos que os outros saibam que o nosso coração se parte e é a partilha com outros seres humanos que iniciará o processo de cura. Mas também contamos para nos purgarmos, nos aliviarmos. Sim, para nos aliviarmos. Imaginem que depertamos um dia e encontramos um filho ou filha morto. Qual é o pai ou a mãe que não sai para fora e vem gritar à bocarra do dia ou da noite esse evento dilacerante? Quem é que passa pelo equivalente daquilo que nós passámos com o nosso filho – e cala, sofre em silêncio, com vergonha de dizer, com medo ou vergonha de que se saiba? Haverá pessoas assim? Ainda haverá pessoas assim? Com certeza que há. Mas eu não sou uma delas. A medicina narrativa, quer praticada nos mais sofisticados hospitais da América, quer exercida por um emigrante que escreveu a história da tragédia do seu filho porque não pôde nem poderia calá-la – tem um valor autoterapêutico. E mais: eu sei que tem um valor auto-afirmativo. Há muitos anos que estudo esse assunto (por exemplo, em obras do escritor português José Rodrigues Miguéis), demasiado complexo e bibliograficamente rico – para elaborar aqui. É o equivalente de um pai ou uma mãe contar histórias ao seu filho doente para lhe enxugar as lágrimas, pois uma historinha contada por um pai ou uma mãe é um lenço verbal que nós humanos usamos há milhares e milhares de anos.
Perguntar-me-ão: senti-me aliviado, depois desses onze dias em que, com a minha esposa Maria Deolinda ao meu lado a conduzir-me pela selva de datas e de nomes de médicos e de procedimentos e de uma quase-intervenção cirúrgica de que afinal o Evan nem tinha necessidade, eu completei o livro? Sim, senti que um peso enorme se tinha tirado dos meus ombros. Senti que a história do meu filho ali estava; que não se tinha perdido ou perderia, pois eu nem tolerava a ideia que ela se pudesse perder. Era demasiado grande, demasiado nossa para se perder – embora fosse, embora seja, num contexto do nosso mundo moderno, de centenas de tipos de cancro, uma história vulgar, infelizmente para todos nós. Narrar a nossa história era e é uma afirmação da vida do nosso filho. É uma intervenção paterna e materna de implicações fraternais também no sentido de alertar outros pais para aquelas estratégias que nos ajudaram; e alertá-los para os perigos que os espreitam, até mesmo nos melhores hospitais do mundo. (E sim, os médicos fazem erros e, sim, a medicina, incluindo os tratamentos para o cancro, é um negócio de biliões e biliões de dólares. Tenho vários episódios no livro que fazem arrepiar.) Eu nunca me senti mais realizado ao escrever nenhum dos trinta e tantos livros de que sou autor, organizador ou tradutor. Este é especial. Este tem que ver com algo que toca a essência mesma do meu ser. Porque ele é um grande livro? Não, não será, ou não me compete a mim ajuizar se é ou não. Mas porque é um livro que me saiu da carne e da alma num momento da minha vida em que eu aprendi o que era ser pai; e creio que só sabemos o que é ser-se pai quando nos aproximamos da terrível descoberta do que poderá ser a perda de um filho. Vê-lo sobreviver a uma doença como um tumor cerebral é vê-lo nascer de novo. Sim, a depressão ainda dura – e já defini a depressão como uma morte que nunca acaba, uma noite com poucas ou mínimas e intermitentes possibilidades de luz. Mas é para a luz que o meu título também aponta pois, como diz o cliché, enquanto há vida a esperança existe. Tudo isto faz parte do que se chama a medicina narrativa. E foi disso que eu quis falar-lhes, é disso que lhes fala Viagem pela Escuridão (Memórias de uma Doença).
Nota: O escritor Francisco Cota Fagundes, natural da Agualva,Ilha Terceira, vive na Costa Leste americana. É Professor de Português de Universidade de Massachusetts Amherst (EUA).