Passado punidor do Presente (ressurreição da Autonomia regional)
Animado pela turbulência saudável provocada pela decorrente ventania política, continuo acicatado pela impressão de que as ambições políticas vão fenecendo no meu ‘canteiro da memória’, enquanto que os entusiasmos cívico-culturais começam a corrigir alguns atrasos provocados pelo turvejar do passado. Falo por mim: tenho procurado pautar os meus dizeres (quase sempre tratados ‘a vol d’oiseau’) pela esperança de que o ser humano está prestes a ultrapassar a encruzilhada duma existência barbarizada pelo mordomado dos deuses…
Independentemente do grau de impetuosidade participativa na alvorada democrática (ou até com mais ou menos proximidade histórico-geográfica dos atropelos revolucionários) quase todos fazemos parte da geração que enfrentou o desafio proposto pelas sinuosidades constitucionais alusivas à Autonomia politica das regiões insulares. Pela minha parte, até meados de 1976, andei mais (pre)ocupado na aprendizagem dos alicerces constitucionais da novel democracia lusitana, do que inspirado pela impecabilidade adventícia da autonomia regional. Mas, cuidado! Não enjeito admitir que, naquele tempo, ainda não disponha de ‘autonomia intelectual’ para enfrentar o repentino ciclone revolucionário da época. Mea culpa!
Não é difícil concordar que o Partido Comunista português, bem dotado da sua tradicional vocação totalitária, nunca hesitou na (discutível) vantagem em “leninizar” o nosso ’25 de Abril’. Creio que esse radicalismo terá contribuído para a consequente inviabialização duma perspectiva liberalizante em prol da criação de um Estado Regional. Por outro lado, o fervor ‘esquerdizante’ daqueles militares mais vulneráveis à manipulação ideológica acabou por oferecer um pretexto valioso para ‘reactivar’ o apetite reaccionário pelo conhecido descalabro revolucionário (1975)…
Nos Açores, houve muitos ilhéus de boa cepa que aderiram (ou foram aliciados) à missão de “recolocar” o comboio do golpe militar nos carris do projecto original: democratizar, descolonizar, desenvolver. Não vale a pena revisitar a má memória daqueles que aceitaram o mafioso convite do conservadorismo internacional que pretendia ‘transaccionar’ a mais-valia geopolítica do arquipélago açoriano. O que interessa agora – creio eu – é admitir a circunstância de que o MAPA tinha nas suas fileiras gente de inspiração social-democrata (alguns que, no passado, já tinham tentado ‘aliviar’ a sua terra da tutela salazarena). Naquele tempo (1974/75), os ‘mapistas’ estavam inspirados pelo dever de não serem vistos como uma jovial parada de ‘parados’, como que atoleimados a assistir ao trajecto imprevisível da procissão da história…
Haja prudência: é sabido que, nos Açores, existiam ‘confrarias reaccionárias‘ inspiradas no mandarinato da A.N.P. (dirigidas por régulos avessos à mudança – gente muito ciosa da respectiva ‘territorialidade’ senhorial). Estamos a falar do tempo em que, curiosamente, a maioria dos caloiros-democratas insulares padecia duma compreensivel ‘miopia politica’, ou seja, não existia ‘frescura’ psico-politica para separar o doente do anormal: admitir a convicção de que a liberdade de pensamento só seria conquistada se os retógrados regulamentos da época fossem questionados em praça pública…
Somos adeptos do princípio de que uma comunidade existe para o beneficio dos seus membros, e não o reverso. Nas últimas três décadas, a realidade regional atlântica parece ter sido substituída pelo ‘pronto-a-vestir’ da credibilidade da moda: nos Açores, o inteligente ‘amaral-cesarismo’; na Madeira, o eviterno ‘jardinismo’ – ambos fenómenos aparentados com o eretismo insinuante da gestão do sucesso. (A propósito, falta mencionar o seguinte: sobretudo no período 1988-2008, foi pena não terem sido rasgadas novas estradas asfaltadas e construídas novas ‘portas-do-mar’ no crâneo dormente da açorianidade…
Saltemos o arame-farpado da história recente. Com a queda do muro de Berlim, o Ocidente entrou num curto período de glorificação narcisista dado o triunfalismo ocidental ter sido bastante humilhado. O preço é medonho: aqui, nos EUA, a Paz foi raptada e a privacidade individual substituída pelo ‘Patriot Act’. Em pleno delírio globalista, chegámos à hora de ‘desocidentalizar’ o planeta. Longe vai o tempo em que o Ocidente (20% da população mundial) mantinha a multissecular ditadura imperial sobre o outro lado do planeta. Será que Altruismo e o Cooperativismo irão resistir aos desafios do futuro?
Felizmente, a Poesia ainda respira! O conceito clássico de Felicidade e de Afluência deveria ser substituído pelo novo evangelho de crescimento voluntariamente consentido: afluência não é o que se tem, mas o que fazemos com aquilo que se possui. Como alguém já disse: “a man wrapped up in himself makes a very small parcel.” Isto para sugerir que o centralismo lusitano faz agora parte do relicário institucional, timidamente protegido sob o pálio constitucional. Depois, temos o centralismo europeu que nos parece inspirado no centralismo do sistema solar: cada um segue na sua órbita desigual sem destino marcado. Por outro lado, atrevo-me a lembrar que uma das conquistas institucionais do século XX – as Nações Unidas – foi uma invenção ocidental, que já não está preparada para atender à irreversivel ‘desocidentalização‘ do planeta.
Entretanto, os Açores continuam a fingir que podem resistir aos meigos empurrões da globalização, devido à feliz circunstância de serem ilhas oceânicas meigamente cobiçadas pelo moderno baronato geo-atlântico. De resto, a Autonomia Açoriana não é mandamento divino, mas tão somente uma ferramenta renovável que o tempo torna obsoleta. Isto para reforçar a sugestão de que a diáspora açoriana deveria começar a ensaiar algumas tácticas solidárias para fortalecer a “açorianidade”, sobretudo através do sector privado da economia, como meio de contrariar o clientelismo partidário…
Sem complexos de pensador original, lembraria que as vulnerabilidades insulares não são de pendor meramente institucional ou territorial: são de raiz educacional, ou seja, nas ultimas três décadas, a autonomia individual é um valor barateado pelo espertismo subsidiado da doutorice turística…
Conclusão: o ideal seria erguer ‘arcos-de-ponte’ entre os membros da ‘minoria’ pensante da diaspora açoriana. Já temos idade cívica suficiente para compreender o seguinte: em democracia, a cidadania só é vilipendidada quando uma comunidade se deixa alienar pela atonia do presente, ignorando o diagnóstico das vulnerabilidades adquiridas pelo delírio ‘desenvolvimentista’ consentido…
… vamos acreditar (apostar!) na ressurreição da Autonomia Regional Açoriana…! —
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(*) o autor não aderiu ao recente ‘acordo ortográfico’)
João-Luís de Medeiros – co-fundador do PS/A (Maio/74); Vereador Municipal, em Ponta Delgada; Deputado Regional (Horta,1976); Representante açoriano na Assembleia da República (1978). Imigrante nos E.U.A., desde finais de 1980. ( B.A. Humanities & Social Sciences (University of Massachusetts / Dartmouth); Master of Sciense – Human Resources Management (Chapman University, Orange, CA).