Passear à chuva*
August 4, 2013 at 10:57am
Eu tenho um amigo de há muitos anos, cujo nome não direi mas que se, por acaso, ler esta crónica – nela se reconhecerá. Tal como muitos homens da minha geração, este meu amigo é um homem de sonhos e de causas, a ponto de, por tais sonhos e causas, ter sido capaz de deixar uma vida profissional de sucesso em meios grados e vir para cá montar um negócio que, feitas as contas, era mais de sonhos e de causas do que de lucros – o qual, no entanto, conseguiu aguentar por cerca de dez anos.
Julgava este meu amigo, na ingenuidade pura dos seus quarentas bem vividos, que conseguiria criar uma marca ligada a conceitos inovadores de bem-estar, e que assim traria gente de bom gosto e de boas posses para, nos nossos matos, nas nossas caldeiras, nos nossos mares, nos nossos biscoitos, nas nossas fontes de águas quentes e sulfurosas, recuperar das malfeitorias de vidas trabalhosas, e daqui regressar às suas terras e cidades com almas novas e corpos confortados. Entretanto, enquanto por cá andavam, tais pessoas dormiam nos nossos hotéis, comiam nos nossos restaurantes, frequentavam as nossas festas, consumiam os nossos produtos, por cá deixando dinheiro que alimentava a nossa economia que dele precisava como de pão para a boca. Entre muitas outras actividades, o meu amigo organizava longos passeios pelos nossos trilhos, que terminavam com uma refeição campestre – como nos “pic-nic” de burgueses de que falava Cesário Verde – e, por fim, em boas sessões de talassoterapia. Esta gente, culta e endinheirada, falando línguas diversas, respeitadora da natureza e da cultura popular, vinha e ia-se sem deixar marcas, ou seja, sem estragar o quer que fosse daquilo que a mãe natureza e os nossos antepassados nos legaram.
Porém, algumas dessas pessoas chegavam cá como quem chega às costas de praias ensolaradas dos climas tropicais – e não raro ficavam decepcionadas pela inconstância do clima, pelas chuvas a meio de Agosto, pelas nortadas que por vezes nos fazem frias as noites, e disso se queixavam. Até que ele, não sei se por ideia própria ou por imitação – o que para o caso tanto faz – criou um lema para os seus passeios pela natureza que rezava assim: “Passeios à chuva. E se não chover, paciência!”.
Certa vez, tendo eu cá vindo com um grupo de gente citadina que trabalhava comigo, em cujo número se contavam políticos, intelectuais e mesmo empresários, ocorreu-me que esse meu amigo poderia organizar alguma coisa que lhes fizesse descobrir os encantos de ilhas de clima atlântico subtropical, e pedi-lhe que o fizesse.
E assim, no dia aprazado, que por acaso até acordou nevoento e chuviscado, lá fomos conduzidos a um dado ponto do interior da ilha, onde nos foram distribuídos uns corta-chuvas e uns chapéus de aba impermeáveis – uns e outros levíssimos e portanto confortáveis –, e de onde partimos, em fila indiana, por trilhos que combinavam turfeiras sumarentas como úberes com pedras de basalto agudas como que saídas do dia da criação. Incessantemente, sem descontinuar, a chuva caía – e os nossos pés enterravam-se na lama, quando o trilho era de terra, ou na verdura sumarenta, quando o piso era de pastagem. Vimos lagoas efémeras, arco-íris dançantes, toiros que nos ignoravam, pastando, pequenos cones vulcânicos figurando fantasmas no nevoeiro – e tudo isto e muito mais víamos num daqueles silêncios que apenas em lugares sagrados são possíveis.
Quando, passadas três horas de caminhada, chegámos ao fim do percurso, aguardava-nos uma refeição ligeira – que comemos, sentados nos socalcos de uma pequena caldeira, com a chuva miúda mas constante a refrescar-nos os rostos suados e a reconfortar-nos as pernas cansadas mas vivas. No fim, quando pagámos, tivemos todos a sensação de que estávamos a dar um óbolo à Natureza – que nos concedera a graça de um passeio à chuva.
Porém, depois de uma série de entraves burocráticos à sua actividade, o meu amigo decidiu arrumar as botas e regressar à sua vida profissional de sucesso, lá fora.
Por cá, resta-nos a chuva.
(no diDOMINGO, de Angra do Heroísmo, e no Açoriano Oriental, de Ponta Delgada)