O meu primeiro exemplar das Pedras Negras, de Dias de Melo, traz como indicação de compra a seguinte data: “carnaval de 1965”. O ano está certo. A época de carnaval é que não: tratava-se apenas de um disfarce, destinado a encobrir o facto de, numa dessas quintas-feiras em que os melros pretos enchiam Angra de sombras e rumores, eu me ter desenfiado (o termo, da gíria militar, só viria mais tarde) do bando para entrar no Adriano, onde pude comprar o livro. O Carnaval era, apesar de tudo, um tempo mais permissivo em relação a essas coisas, e a outras também.
A impressão que me ficou da primeira leitura, feita quase em regime de semi-clandestinidade, foi a de surpresa perante o efeito de proximidade que a escrita produzia, conduzindo-nos por um mundo cujos traços me eram de algum modo familiares: a Calheta de Nesquim, a baleação e os seus dramas, com um ou outro reenvio à Piedade (o mundo pequeno, e mesquinho, da Ponta), o inferno e o paraíso americanos. Por essa altura, eu tinha ainda o direito, a que se refere Daniel Pennac, de me apaixonar pelas personagens de um romance. Assim, pude acompanhar Francisco Marroco nalguns dos seus lances de vida e, principalmente, estive com ele nesse momento final em que vai às Lajes visitar o filho preso e o mundo acaba por lhe cair todo em cima, com o peso ancestral da ilha, o poder do dinheiro e uma justiça feita à medida e para serviço dos poderosos do mundo.
Muitos dos livros desse tempo perderam-se nos meus caminhos e atalhos de leitor; referi-los aqui seria uma forma de expor publicamente a ingenuidade e o entusiasmo dos quinze anos, que fazem com que nos nos deixemos incendiar por fogos efémeros e ilusórios. Pedras Negras, todavia, continuaram comigo ao longo do tempo e através dos lugares, alguns deles muito pouco recomendáveis. E estavam, inevitavelmente, naquela lista de obras que seleccionei, quando, em 1990, comecei a leccionar a cadeira de Literatura Açoriana, na Universidade dos Açores. Aliás, já eram uma obra nela estudada desde 1985, ano em que o também picoense José Martins Garcia introduzira essa cadeira no plano curricular das licenciaturas em ensino.
Durante estes dezoito anos, Pedras Negras constituiram sempre o núcleo de onde partimos para a abordagem à obra de Dias de Melo. O tempo e o contacto sistemático com essa narrativa (também nos Cursos de Verão e nos Cursos Livres de Literatura Açoriana) permitiram descobrir outros aspectos que uma primeira leitura, adolescente, dificilmente revelaria. Porque está lá a representação de todo um mundo insular num tempo determinado, ameaçado pelas contingências do presente e pela memória do passado; está lá o sonho do homem com outros mundos e a amargura de quem se sente expulso da própria ilha, e ainda essa experiência fundamental da descoberta e conhecimento do outro que a viagem proporciona; está lá o gesto solidário no microcosmos da baleeira Queen of the Seas, mas também a versão açoriana do homem lobo do homem na figura do emigrante Albano Passarinho, exemplo lapidar de como a vítima de ontem pode tornar-se o carrasco de hoje. E um traço particularmente relevante, a narrativa do regresso, coisa tão pouco frequente na literatura açoriana: o regresso permite o ajuste de contas final entre a Ilha e o rebelde Francisco Marroco, que ousara desafiar a força do destino insular. E, como se sabe, toda a revolta será castigada. O tempo retomará o seu ciclo destruidor, voltarão as secas, as fomes e a doença; a inveja, as pequenas intrigas e os grandes negociatas encarregar-se-ão de completar a destruição natural: o protagonista acabará destruído, a punição atingirá culpado e inocentes, à boa maneira da tragédia grega. E tudo isto numa urdidura linear e clara, servida por uma linguagem transparente que combina o registo lírico com o trágico, o cuidado com a expressão familiar, popular.
De resto, ao longo deste tempo tenho recebido dos alunos observações críticas, de natureza técnica ou simplesmente de gosto ou de acessibilidade, acerca de outras obras estudadas no âmbito da disciplina de Literatura Açoriana. De Pedras Negras não retenho qualquer observação nesse sentido; a narrativa de Dias de Melo foi objecto de trabalhos individuais para lá do estudo geral e colectivo e motivou mesmo a presença do autor na sala de aula da Universidade dos Açores para discutir com os meus alunos alguns desses trabalhos. O reconhecimento e a aceitação de um escritor também passam por estas coisas, mesmo que não sejam muito mediatizadas.
Manuel Urbano Bettencourt Machado (1949),É natural da Ilha do Pico,vive em Ponta Delgada. Professor da Universidade dos Açores. Um dos mais expressivos escritores contemporâneos açorianos.
Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa. É professor Assistente Convidado na Universidade dos Açores,no Departamento Línguas e Literaturas Modernas, onde tem lecionado entre outras, as disciplinas de Introdução aos Estudos Literários, Literatura Portuguesa, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa e Literatura Açoriana.
Tem dedicado particular atenção às literaturas insulares, tendo já proferido conferências a propósito nos Açores, em Cabo Verde, Madeira e Canárias.
Colaborador da imprensa desde muito jovem, ficou ligado ao suplemento “Glacialâ€, de A União, e que constituiria a matriz referencial de um grupo de escritores açorianos revelados nos finais dos anos 60, princípios dos anos 70.No final dos anos 70 dirigiu, juntamente com o poeta J. H. Santos Barros, A Memória da Água-Viva (revista de cultura açoriana) durante a sua fase de publicação em Lisboa.Tem colaboração dispersa pela imprensa, rádio e televisão; para esta última trabalhou com o realizador José Medeiros na feitura do documentário Djutta Ben-David: voz & alma e na adaptação do romance Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio.
Poesia e narrativas:
Raiz de Mágoa (Setúbal, 1972); Ilhas (de parceria com J. H. Santos Barros; Lisboa, 1976); Marinheiro com Residência Fixa (Lisboa, Grupo de Intervenção Cultural Açoriano, 1980); Naufrágios inscrições (Ponta Delgada, Signo, 1987); Algumas das Cidades (Angra do Heroísmo, IAC, 1995); Lugares, Sombras e Afectos (desenhos de Seixas Peixoto; Figueira da Foz, Ed. dos autores, 2005); Santo Amaro sobre o mar (desenhos de Alberto Péssimo; Porto, Editorial Moura Pinto, 2005 e 2009,2ªedição).
Ensaio:
O Gosto das Palavras (Angra do Heroísmo, SREC,1983); Emigração e Literatura (Horta, Câmara Municipal, 1989); O Gosto das Palavras II (Ponta Delgada, Jornal de Cultura, 1995); De Cabo Verde aos Açores – à luz da “Claridade†(Mindelo-Cabo Verde, Câmara Municipal, 1998); O Gosto das Palavras III (Lisboa, Ed. Salamandra, 1999); Ilhas conforme as circunstâncias (Lisboa, Ed. Salamandra, 2003).
Seu mais recente título: Que paisagem apagarás. Narrativas.
Editor: Publiçor,julho de 2010
Crédito Imagens:
Urbano Bettencourt – Magda Medina