Pedrinho Menez vai voltar rico
Em meados de 59, Pedrinho Menez reuniu o que podia reunir, deixou a mãe aos cuidados de Vidalma e tocou-se para o vizinho Rio Grande a fazer fortuna. Ninguém da terra foi capaz de entender: de repente, Pedrinho se tornava assim mundeiro, ele cujos pés, para o norte, não foram nunca além das areias de São Miguel e, para o sul, jamais tinham passado da Enseada de Brito. Mas foi e o povo soube logo por quê: foi por orgulho ferido, coração em sangue. E treze anos depois, anunciado por breve telegrama (“Fiquei rico pt Vou dia vinte pt”) , eis que Pedrinho Menez voltava importante de encher todos os olhos, principalmente os olhos de gato de Seu Lindauro Duarte, homenzinho mesquinho, pai de Vidalma, a inditosa. Chegou na mais bela fatiota creme, em carro de praça alugado na cidade, dele batendo a porta com elegância e bom jeito. Estava um moço distinto. O pequeno povo arregalou-se e veio querer conversa, mas Pedrinho Menez não quis perder seu tempo: antes mesmo de ir ver a velha mãe que pelos treze anos o aguardou na varanda, foi dar à noiva um resumo do que tinha acontecido em tão longo tempo.
– Vidalma, temos que falar sério.
A moça ria, trintona e ainda bonita, ria boba, abraçada. No canto, o pai não acreditava no que seus olhos viam: era ele, sim, sim, rico e risonho, todo fidalgo até na maneira de respirar, era ele mesmo, todo poderoso, Pedrinho. “Será possível?” Pois a verdade é que o rapaz já era tido por tresmalhado e até morto há muito tempo. Há mais de dez anos que deixara de manter ligação com a vila e só duas pessoas neste mundo, mãe e noiva, podiam hoje bater no peito e dizer: “Só nós duas aqui é que tivemos certeza de que ia chegar ainda este dia bendito”. Os outros não: ou se riram como uns herodes daquela idéia de ir para longe ganhar dinheiro ou logo esqueceram tudo. Lá uma vez ou outra alguém ainda perguntava: “E então, Dona Luzia, e então, Vidalma, tiveram notícia do nosso homem?” Elas não mentiam; não, não mentiam, mas juravam que ele ainda vinha porque vinha, botavam a mão no fogo por isso, um dia todos iam ver. Seu Lindauro então só sabia ser zombeteiro. Gostava de repetir, diante da filha e diante de todos: “Está aí: não se sabe mais nada do Pedrinho. Eu sempre achei que aquilo não era de se acertar lá fora, longe da mãe. Sumiu bem sumido, isso sim”. Em particular para Vidalma dizia assim, muito sério: “De grande porcaria a gente se livrou, minha filha”. Mas Vidalma não deixava o pensamento enfraquecer; nem Dona Luzia Menez. As duas persistiam. Respeitaram o moço, sua distância dolorosa. Demorados dias e dias ficaram falando sobre o possível paradeiro dele, menino grosseiramente intimado a ficar rico, se é que queria mesmo fazer jus à mulherzinha Vidalma, e valentemente caído assim no mundo sem tamanho, num arranco brioso, sem um pingo de medo no sangue. Por onde andaria? pescando? plantando? enchendo caminhão ou sendo caixeiro de bodegas, servente de alguma obra? E as duas faziam tudo, de retratinho na mão, para não perder da memória um só traço do rosto fino, aquela calma no rir, aquela pouca pressa dos gestos. Todo fim de tarde, Vidalma trazia a costura de mão e vinha se entreter na varanda de Dona Luzia. “Teu pai foi mau, muito mau.” Vidalma procurava um desculpa, mais para si mesma, e dizia: “Foi só fraqueza dele. Sabe, foi só medo. Saindo eu de casa, quem que tratava dele, quem? Foi só medo de ficar sozinho”. Mas as duas sabiam que o mal de Seu Lindauro Duarte era bem mais que esse medo de ficar sozinho na vida: aproveitador é o que ele era, mesquinhozinho aproveitador da filha, que desde menina já costurava até noite alta para garantir o sustento deles dois. E ele? Ele sempre falando dum cansaço nas pernas, um peso nas costas, uma ardência nas mãos. Dormia até tarde, conversava horas seguidas na venda de Isaque Rebolo. Homem insatisfeito. Homem ingrato. Pois na hora de comer, já se sabe – na hora de comer, tinha sempre que reclamar aos brados e até aos socos na mesa: quando não era pouca, era malfeita a comida.Mas Vidalma suportava, repetia em vida aquela mesma fortaleza que fez da mãe uma santa. Nunca chorou. Acostumou-se. Se o pai alteava a voz, ela mais aprofundava sua paciência, sua calma. Não chorava com a implicância contra um vestido mais cheio de cor ou contra o namorozinho meio escondido, feito nas folgas do domingo ou de um feriado. Não chorou nem mesmo naquela noite, em meados de 59, quando esse namorado Pedrinho Menez, tomado de coragem, foi falar com o velho. Falou sincero – mas pois sim!, ninguém conhecia mesmo a natureza difícil de Seu Lindauro Duarte. “Casar?” O espanto era um espanto indignado. “Casar? E eu? Eu fico sozinho, chupando o dedo? Ela casa, sai, me deixa num canto morrendo de fome, que é que é isso?” Pedrinho disse que não, nunca, eles iam ajudar, Vidalma continuava costurando, ele continuava na pesca ali mesmo na Ilha ou arranjava outro serviço mais rendoso, ia dar folgado, não tivesse um pensamento tão triste, pelo amor de Deus. Mas Seu Lindauro replicou: “Ajudam? Ah-ah, eu bem conheço a mocidade, gente nessa idade de vocês mente como o demônio. Dizem uma coisa, prometem, trapaceiam de todo jeito, então eu não conheço? Não, não vão casar. Não deixo. Ela só sai daqui se aparecer um homem garantido na vida”. Vidalma repetiu o que Pedrinho já tinha dito. E então o homem ficou zangado: filha sua não tinha o que retrucar, tinha é que obedecer, pensar no seu velho pai, respeitá-lo. “Não vão casar. Acabou-se.” Pedrinho Menez nessa hora não se controlou – assumiu um jeito firme no meio da sala e pronunciou estas sérias palavras de homem: “Seu Lindauro, o senhor escute bem o que vou dizer: estou agora, neste momento, noivando com a sua filha. Deus fica de testemunha. Me comprometo. E amanhã mesmo vou pra fora daqui, vou pescar no Rio Grande, vou ficar rico. Pode escrever: vou pro Rio Grande, volto rico e caso com a Vidalma. Adeus”. Em dia e meio reuniu o que podia reunir, deixou a mãe a cargo da noiva e partiu, certo de que num ano, ou nem isso, ia voltar forrado de dinheiro. Tantos já não tinham ido? Verdade que nenhum, ao que se sabia, enriqueceu mesmo, mas o principal na vida o que é? não é ir tentar? não é botar bem no meio da cabeça: vai dar, vai dar, pra mim vai dar? E então? Então Pedrinho saiu mesmo de alma otimista, peito bem armado, olhar aceso. Ah, se dependesse da ânsia de querer, dos projetos que foi erguendo na demorada viagem! Mas ai, ai, Pedrinho Menez – treze anos! treze anos, poxa mundo velho! Nos primeiro dias escreveu: era um olhar todo escancarado na terra nova, tudo grande e bonito, muita fé no serviço alcançado sem esforço. Novas cartas: mãe, estou contente como a senhora nem imagina; Vidalma, não vai um ano não, que nada! Novas cartas: saudades fortes, um outro serviço – é claro, um serviço para melhor, não faz mal que seja mais trabalhoso, desde que dê dinheiro. Depois, alguma dificuldade (quem que não tem?), alguns sacrifícios, outras saudades, depois a transferência do mar para a terra, parece que está dando mais resultado trabalhar numa boa firma, uma transportadora, o mar é meio ingrato, às vezes falha tanto, a gente perde tempo nele. Depois, chateado, uma passagem por Camaquã, numa granja de arroz. Depois Tapes. Depois Porto Alegre. “Ele está lutando, como ele luta!” – dizia a mãe, a cada carta recebida. “Ele consegue” – completava a noiva. “Ele vai é se perder por lá mesmo” zombava o velho cruel. No segundo ano, Pedrinho escreveu menos. Torres, Tramandaí, Novo Hamburgo, São Jerônimo, uma andança um pouco sem rumo. No terceiro ano, mandou três cartas. A última delas dizia: “Estou com vergonha. Só vão saber de mim quando eu ficar rico. Não escrevo mais. Me esperem&
rdquo;. Dona Luzia chorou, mas Vidalma resistiu e compreendeu que aquilo era um forte gesto de homem. Ia esperar.
Pois Pedrinho Menez, ora vejam!, estava ali na saleta bichada de Seu Lindauro Duarte. Ele mesmo, em carne e osso, encarando o velho como um senhor doutor.
– Temos que falar sério, Seu Lindauro.
Não falou logo. Primeiro deixou que vissem bem que tinha relógio no pulso e abotoaduras douradas na camisa listradinha de azul. Depois, não falou logo porque estava um pouco nervoso mesmo. O que tinha a dizer não era fácil. Mas começou:
– Vidalma, Seu Lindauro, como eu falei no telegrama, estou rico. Fui pro Rio Grande, sofri todo esse tempo, passei fome, rolei feito um desgraçado. Treze anos e dezoito dias. Nem sei se a mãe ainda vive – ela vive?
– Vive, vive.
– Pois fiquei rico. Na última vez que eu escrevi pra cá eu falei: só apareço quando estiver rico.
– Te esperamos sempre, homem – disse Seu Lindauro.
– Mas venho com um porém meio ruim. Temos que falar sério, Seu Lindauro.
– Fale, fale, Pedrinho.
– Tenho um compromisso.
– Sim. Minha Vidalma te esperou.
– Tenho um compromisso no Rio Grande, com uma moça que é filha do meu patrão. Rolei, rolei, mas meu dia chegou, Seu Lindauro: fiquei rico, caso com essa moça e estou rico.
Lindauro Duarte fechou a mão, depois fechou os olhos. Vidalma não tirou os seus da boca de Pedrinho. Depois olhou o pai, que já deixava escapar sua raiva:
– Este porco!
Pedrinho Menez afligiu-se:
– Se eu casar com essa moça, estou rico, mas olha, Seu Lindauro, escuta, eu faço uma coisa bem doida – sou capaz de largar tudo, tudo, não quero venda, não quero gado, nem as terras, nem caminhão, nada, nada, esqueço tudo, fico aqui com vocês, não volto mais. Caso com a sua filha hoje mesmo, é questão de gosto.
Começou a ventar sul, escurecia e esfriava. A moça esperou que o pai decidisse. A decisão dele foi rápida, em voz baixa:
– Na miséria, nunca…
– Pai, a gente…
– Nunca. Resolvido!
Sempre respeitosa, condenada ao pai, Vidalma foi para o seu quarto, de ombros agitados. Os dois homens ficaram respirando forte. Pedrinho pensou: “Faço um serviço de macho: dou-lhe um pontapé nos queixos, levo essa mulher, se acaba tudo”. Mas se fez concreto: “Ela não vai, assim contra a vontade não vai nunca, nem arrastada”. E então? Então Seu Lindauro acusou:
– Enganou a gente, Pedro Menez. Ficou rico lá fora mas não foi pra nós, da tua terra.
– Só tive esse jeito, não tive outro. Mas eu largo tudo…
– Não, não, pobre não te quero, já basta a gente.
Seu Lindauro era rijo, cada palavra dele batia como uma pedra. Sem ameaça, apenas como quem encontra o fim dum caminho, Pedro Menez disse:
– Então eu vou voltar. Me caso no Rio Grande.
– Pois volte. Pois te case.
Nisso eles viram: Vidalma passou meio que tonta pela saleta, saiu para a rua. Pedrinho quis segui-la. O velho agarrou-o com força:
– Deixa. E sai daqui, vai-te embora.
A filha já madura de Seu Lindauro Duarte foi caminhando, aluada, se batendo de vento. O povo acompanhou, concentrou-se: sob uma figueira que havia, encolhida de frio e cobrindo-se de folhas, ela como que ia dormir. Mas não permitiram – era uma moça tão boa.
Pedrinho também não encontrou melhor saída – sua armadilha não alcançou o pé arisco daquele velho perdido. Deixou algum dinheiro com a mãe e já partiu de novo, com seu terno creme, seu relógio e abotoaduras de latão brilhante. Voltava ao Rio Grande, onde não existia filha nenhuma de patrão nenhum, esta é boa!, mas onde ainda ia ficar rico de encher todos os olhos – ah, isso ia, bem devagarinho que fosse, mas ia.
(*) Conto publicado no livro Zelica e outros (1978),Ed.FTD. -.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-
Do Autor: FLÁVIO JOSÉ CARDOZO
Nasceu em Lauro Müller,na região carbonífera de Santa Catarina, em 1938. Frequentou o Curso de Jornalismo da PUC-RS. Trabalhou na Editora Globo de Porto Alegre, foi diretor da Imprensa Oficial de Santa Catarina e da Fundação Catarinense de Cultura. É membro da Academia Catarinense de Letras.
Escreveu os livros de contos Singradura, Zélica e outros e Guatá. Como cronista publicou Água do pote, Beco da lamparina, Tiroteio depois do filme, Senhora do meu Desterro, Trololó para flauta e cavaquinho (com Silveira de Souza), Uns papéis que voam, Duas violas arteiras (com Sérgio da Costa Ramos) , Sopé (com o desenhista Tércio da Gama,2009) e “Batuque Temperado” com Jair Francisco Hamms(2009). Na área da literatura infanto-juvenil, publicou O tesouro da Serra do Bem-bem.