Só me resta ser poeta
nesta ilha abandonada
fazer do mar uma festa
e de mim coisa de nada.
Tenho ainda arte e vento
noite escura e tentação
achas doces, docemente
sombras daquilo que são.
E o sentir do pensamento
de tudo e nada um bocado
só me deixa ser poeta
nesta ilha abandonado.
Mas se eu morrer um dia
perdoem a heresia
e rezem uma ermida
àquela santa da vida
***
Nas horas de partida acende-se um rasto
O sítio presente desfaz-se num astro distante
O ausente ganha forma de sulco na terra
Parecem sonhos os sonhos lavrados no instante minado de adeus
Sementes visitadas pela mãe lua
Ruas vazias de desgaste arrastado na cheia
E como se isso não bastasse
Está tudo tão perto que não se chega nunca
A realidade é um deserto no horizonte
E a partida apenas um poente
Tão incerto e evidente para quem fica
No seu regresso de imaginação ferida
Nos seus versos perdidos na partida
Quando as horas demoram no remorso dos sinos
Na sirene do navio.
in O Poeta,
Pico, edição do autor, 1991.